Cabul foi cercada, o presidente Ashraf Ghani entregou o cargo, e a ocupação militar do Afeganistão vai terminar com a volta ao poder do grupo que abrigou a Al Qaeda, responsável pelo maior ataque contra os Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial. O fim de um ciclo tão trágico como inevitável.
A comunidade internacional nunca encontrou uma solução para o desafio da formação do Estado no Afeganistão desde 1989 e a retirada soviética: a descentralização do poder, distribuído entre milícias, chefes de guerra, forças regulares e insurgentes, e a consequente ausência de monopólio da força pelo Estado. Os pomposos programas de reconstrução do sistema legal e dos serviços públicos, animados por professores universitários e consultores internacionais, drenaram fortunas, mas jamais conseguiram tirar o regime da lógica da guerra e da extração.
A velocidade do colapso do aparato militar não deixa de surpreender. Os 150 mil soldados regulares receberam treino, soldo, e armamento, mas a sua vinculação política continuou inexistente. Quando começaram a sentir a mudança de ventos, os soldados recusaram-se a enfrentar os futuros donos do país em nome de um governo e de uma força ocupante em quem nunca acreditaram. A única exceção é o contingente de 50 mil militares forças especiais que, apesar dos meios sofisticados, sofrem contra os insurgentes, mestres na arte da guerra assimétrica. Na ausência da força aérea americana, que garantia a superioridade artificial do exército por meio de devastadores bombardeios, os talebans conquistaram as capitais provinciais sem qualquer oposição no espaço de uma semana, até chegarem ao corredor estratégico entre Kandahar e Cabul nas últimas 48 horas.
Joe Biden deixou claro no seu comunicado oficial publicado no último sábado (14) que não havia alternativa. Ele sabe que o projeto de ocupação do Afeganistão entrou em colapso logo em 2003, quando o presidente George W. Bush mobilizou todo o aparato militar na criminosa invasão do Iraque.
A memória dos últimos 20 anos vai ser moldada pelos acontecimentos dos próximos dias. As imagens do fechamento das escolas e do regresso das piores praticas misóginas vão ser cinicamente exploradas pelos republicanos. A omissão de Washington diante do desespero dos civis afegãos que serão perseguidos pelo simples fato de terem acreditado nos Estados Unidos é uma infâmia injustificável.
No entanto, se Biden provavelmente se arrepende da sua declaração de 8 de Julho, quando disse confiar na resiliência do governo afegão, ele ainda confia na legitimidade da sua decisão, defendida por especialistas militares e movimentos da sociedade civil. Num gesto de rara coragem política, ele assumiu a responsabilidade de uma herança maldita. Todo o contrário dos seus predecessores, que preferiram sustentar uma ilusão com trilhões de dólares do contribuinte.
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