A história global da campanha de imunização contra o novo coronavírus ainda vai nos seus primeiros capítulos, mas só o Reino Unido terá um roteiro digno de Hollywood.
Quando a diplomacia das vacinas virou uma realidade em meados do ano passado, Boris Johnson confiou a Kate Bingham, uma capitalista de risco com três décadas de experiência financiando produtos inovadores da indústria farmacêutica, o poder de negociar com os laboratórios em nome de Londres.
A lógica por trás da decisão é simples: um time de burocratas do setor público jamais conseguiria navegar no mercado ultracompetitivo das vacinas em plena pandemia.
Bingham desenhou uma estratégia agressiva baseada na sua relação profissional com executivos de laboratórios, na antecipação de problemas na cadeia de produção, e na criação de um portfólio diversificado de vacinas.
A carta branca do premiê fez toda a diferença. Segundo o seu épico relato para o La Reppublica, “a primeira conversa com os executivos era na quinta, a segunda reunião no sábado, e no fim da semana seguinte nós já tínhamos o rascunho do contrato”.
O resto da história é conhecido. A distribuição das vacinas adquiridas pelo time de Bingham ficou a cargo do National Health Service, um dos sistemas de saúde mais centralizados do mundo.
Com a ajuda de um número incalculável de voluntários, o NHS já vacinou 90% da população com mais de 70 anos.
A receita do sucesso britânico é a aliança entre os planejadores do Estado e os falcões do mercado.
Quando o secretário de comunicação, Fábio Wajngarten, tentou racionalizar a desgraça do governo nesta Folha (“O tamanho e a ordem de grandeza de cada país”, 11/1), ele optou pela comparação absurda entre Brasil e Israel, deixando de lado o caso britânico. Afinal, ele sabe muito bem que o Brasil, em tempos normais, estaria seguindo a estratégia adotada por Londres.
Com a sua tradicional diplomacia multilateral, o Brasil poderia falar com laboratórios asiáticos e ocidentais. O plano nacional de imunização brasileiro faz inveja a muitos países desenvolvidos.
Os atores do setor privado poderiam ajudar a desenhar a estratégia do Estado. Um verdadeiro capitalista nunca teria perdido a oportunidade de disputar no mercado mundial de vacinas.
Mas Jair Bolsonaro e Paulo Guedes não estiveram à altura de Boris Johnson e Kate Bingham. A incompetência generalizada do governo central provocou uma descentralização selvagem do processo de aquisição de vacinas e de sua distribuição.
Na semana passada, uma mistura de voluntarismo e desespero levou prefeitos de cidades médias a tentarem articular a compra direta dos laboratórios.
Incrivelmente, empresários conhecidos por disseminar as teses de cloroquina também anunciaram uma operação conjunta. Quais são as chances de essas investidas amadoras darem certo? Eles vão conseguir competir com os capitalistas de risco?
Só tem um responsável por esse circo. Bolsonaro quebrou a espinha do Estado no momento em que mais precisávamos. Poderíamos viver como no Reino Unido, mas corremos o risco de morrer como no Paquistão.
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