segunda-feira, 15 de junho de 2020

Passando através, Daniel Martins de Barros, O Estado de S.Paulo


15 de junho de 2020 | 05h00

Atualmente comer chocolate faz bem ou faz mal? Entre a redenção do ovo e a condenação do glúten, acho que fiquei um pouco perdido. Como essas coisas mudam muito, resolvi o que fazer: a próxima pesquisa mostrando que chocolate faz bem será a última que lerei sobre o tema. Quando os cientistas chegarem a uma conclusão definitiva, por favor me avisem.

O problema – e a solução – é que não existem conclusões definitivas em ciência. Eu sei que é irritante cada hora ouvirmos falar uma coisa, com as mensagens aparentemente se contradizendo, mas é exatamente isso que faz da ciência o empreendimento bem-sucedido que ela é. 

Se o conhecimento científico não fosse assim ainda, estaríamos prescrevendo remédios contra malária para combater uma epidemia viral, matando as pessoas pelos efeitos colaterais e em troca de nenhum benefício – como ocorria na gripe espanhola. Por que paramos com essa prática? Porque o conhecimento avançou, mostrando ser um risco inútil. Com o desenvolvimento do conhecimento e das práticas científicas a medicina foi progressivamente abandonando o puro empirismo e se fiando cada vez mais em pesquisas clínicas para testar a eficácia de medicamentos. Hoje não é mais justificável sair dando primeiro e testando depois. 

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A ciência mostrou que muitas coisas então praticadas e defendidas faziam mais mal do que bem. Muitas outras se provaram úteis, é verdade. Mas a lição principal é que apenas a experiência prática não garante nada.

Por isso, ainda que seja cansativo ver organizações e entidades médicas e científicas mudarem as recomendações oficiais durante essa pandemia de covid-19, é melhor que seja assim. Quando se compreende que essa é uma doença nova, que não existia na humanidade até o réveillon de 2019, é esperado que o conhecimento sobre ela melhore com o tempo. Afinal, cientistas tiveram de partir do zero na construção do conhecimento sobre ela.

Para piorar, embora os cientistas esperassem uma pandemia para mais cedo ou mais tarde, obviamente é bastante complicado se preparar para algo que não existe. Todos os protocolos de enfrentamento de epidemias levavam em conta o que se sabia sobre outras doenças, como influenza ou SARS. Daí, por exemplo, a recomendação inicial de que a população não precisaria usar máscaras. Dados reunidos até então por ocasiões de grandes gripes não mostravam eficácia em tal prática.

Mas o método científico funciona justamente colocando hipóteses em xeque e verificando se sobrevivem, e essa recomendação mudou ao longo do tempo. Não seria de se espantar se mais para frente mudasse de novo. E tudo bem – melhor viver num mundo em que um conhecimento substitua o outro do que num mundo em que nos aferramos a práticas inúteis.

O Reino Unido é um dos maiores exemplos de mudança de rota no meio do caminho. Paradoxalmente eles foram vítimas de um certo excesso de preparação. Para além das variáveis políticas envolvidas em suas primeiras recomendações, havia um sólido corpo de conhecimento sobre o que funcionava ou não diante de uma epidemia. 

Caminho. Usar máscaras não adiantava. Fechar escolas era pouco eficaz. Cancelar eventos se mostrava questionável. E com essas evidências eles optaram por tentar seguir a vida normalmente. Investir na imunidade de rebanho. A estratégia pode de fato funcionar para outras doenças nas quais os pacientes, quando graves, precisam em média de poucos dias de UTI. As pessoas vão pegando, entram e saem do hospital num ritmo em que não faltam vagas. Mas a realidade mostrou que o novo coronavírus não é gripe. As pessoas demoram muito para sair das UTIs quando ficam graves. E começa o colapso na rede hospitalar. Foram forçados a mudar a política, pois quando a hipótese inicial é derrubada pelas evidências, aí sim seguir apegado a ela é burrice. E por vezes fatal.

Pode esperar que ainda veremos muitas reviravoltas nesta pandemia. As formas de transmissão serão mais bem conhecidas. Os riscos mapeados. A biologia do vírus desvendada. E com isso as orientações irão mudando.

Uma hora vai passar. Mas como disse o poeta Robert Frost, “O melhor caminho é sempre através”. 

No nosso caso, é provavelmente o único.


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