quarta-feira, 17 de junho de 2020

Esper Kallás O estigma dos morcegos, FSP

Entender esses animais é fundamental para compreender epidemias

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Considerados sagrados por povos da África Ocidental, os morcegos são frequentemente envoltos em crenças místicas de natureza sombria. São também reservatórios de diversos micróbios, alguns dos quais potencialmente danosos ao homem. Recentemente, tornaram-se alvo de maior preocupação, quando um vírus migrou deles para a espécie humana, num salto que resultou na atual pandemias.

Esse fenômeno não é o primeiro da história. Suspeita-se que várias viroses surgiram a partir de morcegos, pois o material genético de mais de 400 mil diferentes tipos de vírus foi identificado em morcegos.

Pesquisadores buscam morcegos no campo para estudar vírus nesses hospedeiros em floresta próximo à Araçatuba, interior de São Paulo.
Pesquisadores buscam morcegos no campo para estudar vírus nesses hospedeiros em floresta próximo à Araçatuba, interior de São Paulo. - Cristiano de Carvalho/Divulgação

A raiva é exemplo clássico. Uma das doenças infecciosas mais mortais, pode ser transmitida por vários mamíferos silvestres, inclusive morcegos.

O vírus Hendra, nomeado a partir da cidade australiana em que os primeiros casos foram descritos, pode causar doença em equinos e mortes em humanos que têm contato direto com os cavalos doentes.

Após um surto em porcos em 1998, na Malásia, mais de uma centena de pessoas morreu por infecção cerebral, dentre quase 300 casos de doença causada pelo vírus Nipah. Esse mesmo vírus causou vários outros surtos na Ásia e Oceania.

A febre Marburg pode causar doença hemorrágica e morte. Muito perigoso, o vírus foi isolado na Alemanha, na década de 60, e continua causando surtos da doença, principalmente na África. Chegou, inclusive, a ser explorado como arma biológica durante a guerra fria entre EUA e União Soviética.

O Ebola, por sua vez, ganhou notoriedade em 2014, quando causou epidemia no leste da África, com pelo menos 28 mil casos e mais de 11 mil mortes. Desde sua identificação em 1976, já causou mais de 30 surtos, incluindo o atual, na República Democrática do Congo.

Ao menos três doenças causadas por coronavírus, recentemente transmitidas para humanos, têm sua origem em vírus ancestrais e que habitam morcegos. A Sars, que ocorreu na Ásia em 2002, infectou cerca de 10 mil pessoas e causou mil mortes. A Mers, no Oriente Médio, causou cerca de 2.500 casos, com 35% de mortes, desde 2012. Identificado em 2019, o novo coronavírus é o responsável pela pandemia de Covid-19.

Inúmeros outros vírus são encontrados em morcegos, que os mantêm em equilíbrio graças a um sistema de defesa que desperta curiosidade de imunologistas do mundo todo. Elucidar como são capazes de comportar tamanha quantidade de germes pode nos fazer entender melhor como é possível ampliar a nossa própria imunidade, aprimorando nosso arsenal de proteção contra novas ameaças biológicas.

Tronco de árvore oco com morcegos da espécie Desmodus rotundus.
Tronco de árvore oco com morcegos da espécie Desmodus rotundus, próximo de Araçatuba, interior de São Paulo. - Cristiano de Carvalho/Divulgação

Caso ocorra ao leitor que o extermínio dos morcegos seja uma medida razoável para o controle dessas infecções, saiba que o impacto seria devastador, com consequências graves para todo o ecossistema.

Apesar do estigma, somente três espécies de morcego se alimentam de sangue, encontradas na América do Sul e em parte da América Central. Desempenham funções essenciais à manutenção do meio ambiente. São grandes responsáveis por controlar populações de insetos e participam ativamente na dispersão das sementes e na polinização de plantas.

Morcegos são muito mais do que seres ameaçadores. São animais fascinantes pela sua natureza única e sua capacidade de adaptação. Com mais de 1.300 espécies, representam quase 22% de toda a diversidade de mamíferos que habitam a Terra, ausentes somente na Antártida. São longevos, característica que motivou inúmeros estudos sobre envelhecimento e prevenção de câncer.

Estudá-los é a melhor forma de preservar a natureza e nos proteger de futuras pandemias.

Esper Kallás

Médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.

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