terça-feira, 23 de junho de 2020

Falas agressivas e violentas deveriam ser punidas?, Joel Pinheiro da Fonseca, FSP

Justiça das redes sociais preocupa mais que discursos que ela busca enquadrar

  • 4

Em novembro do ano passado, após o STF decidir contra a prisão após condenação em segunda instância, a advogada Claudia Teixeira Gomes publicou em sua conta no Facebook: “Que estuprem e matem as filhas dos Ordinários Ministros do STF.” Ela responde a processo disciplinar na OAB e está sendo investigada no inquérito do Supremo contra fake news.

Em abril, a atriz Maria Flor publicou um vídeo no Youtube em que fala, em tom de deboche, de sua vontade de matar o presidente Jair Bolsonaro. “Eu queria só poder pegar o Bolsonaro e esfregar a cara dele no asfalto quente, entendeu?” Ela e seu marido, parceiro de canal, passaram a receber xingamentos e ameaças nas redes sociais e se viram obrigados a publicar um vídeo de desculpas e explicação alguns dias depois.

Agora em junho, o escritor João Paulo Cuenca publicou, em seu Twitter, uma reedição do clássico bordão iluminista radical: “O brasileiro só será livre quando o último Bolsonaro for enforcado nas tripas do último pastor da Igreja Universal”. Além dos xingamentos e ameaças de praxe, ele teve sua coluna na Deutsche Welle prontamente cancelada e diz-se que será processado por pastores da Universal.

Nesses três casos, um mesmo fenômeno: manifestações, nas redes sociais, do desejo de matar uma autoridade, que acarretam diferentes consequências para seus autores. E que nos faz indagar: até que ponto devemos permitir a liberdade de expressão?

Há diferente respostas possíveis. Uma que, apesar de tentadora, não pode ser aceita é a de permitir uma conduta agressiva de acordo com seu teor político ou ideológico. Não pode ser o nosso juízo acerca do mérito do atual presidente ou dos ministros do Supremo que permita ou proíba manifestações agressivas contra eles.

A expressão pública do desejo de morte costuma ser a manifestação hiperbólica de um sentimento de indignação. Em alguns casos, humorística (como no de Maria Flor); em outros, literária (como no de Cuenca); e em outros ainda apenas a expressão infeliz de uma raiva mal processada (como no de Claudia Gomes). Mesmo na linguagem cotidiana esse registro está presente: falamos da “vontade de esganar” alguém. Isso deveria ser punido? Penso que não.

Estamos, é claro, pressupondo que as falas não levem aos atos a que se referem.

Se o contexto da fala leva a crer que ela possa se converter numa incitação ao assassinato, a coisa toda muda de figura. Assim, o discurso raivoso de um formador de opinião com uma horda de seguidores fanáticos está sujeito a juízo diferente da piada casual de um zé-ninguém.

A reação de empresas e do público em geral é, hoje, tão relevante quanto a punição legal. A justiça das redes sociais é enviesada; responde ao sabor do momento.

A opinião pública é implacável, hipócrita e desconhece contexto ou nuances.

Falar em matar Bolsonaro trará xingamentos e ameaças em massa do público (parte dele organizado justamente para ameaçar e hostilizar desafetos do presidente); já fazer o mesmo com um ministro do Supremo não gera a mesma indignação popular.

A rede social mistura o público e o privado. Sendo assim, cabe a todos nós ajudar a evitar injustiças.
Com a consciência de que estamos todos sujeitos a falar coisas que não cairão bem com o grande público, é preciso desenvolver a tolerância e a boa-fé como regras. Preocupo-me mais com a “justiça” das redes (e com as empresas que se deixam intimidar por ela) do que com as falas violentas que ela busca punir.

Joel Pinheiro da Fonseca

Economista, mestre em filosofia pela USP.

Nenhum comentário: