Atribuir rótulo serve como resposta fácil para questões difíceis
“Ao longo de muitos anos tenho me colocado sempre a mesma pergunta: a China é ainda um país comunista convivendo com uma economia de mercado, ou é de fato um país capitalista governado por um partido formalmente comunista?”
Extraído do ótimo ensaio do embaixador Marcos Azambuja na edição mais recente da revista Piauí, o trecho me chama a atenção. Resume magistralmente angústia que já foi minha também. Digo no passado não porque tenha encontrado respostas para perguntas desse tipo. Mas porque estou convencida de que nunca as terei.
Noutro dia, num desses vídeos que circulam por WhatsApp, vi uma mulher esbravejando em frente ao consulado da China no Rio de Janeiro. No auge da raiva, ela respira fundo, capricha no insulto e grita: co-mu-nis-tas! Achei curioso.
Fiquei me questionando o quão ofendidos ficariam meus colegas de trabalho em Pequim ao saberem que o governo chinês, liderado há 70 anos pelo Partido Comunista, foi xingado de ser, ora, comunista.
Mais do que isso, voltei a me questionar sobre a utilidade de atribuir o título de comunista ou capitalista a um país, a um regime político ou a um modelo econômico. O quanto isso contribui para entender sua essência e suas particularidades.
Talvez sirva para dar conforto a quem atribui o rótulo ao produto, pela sensação que gera de haver entendido, pela magia de uma palavra, toda a complexidade do objeto estranho. Talvez funcione como um atalho mental que permite pular etapas e rapidamente formar uma opinião.
O próprio presidente Jair Bolsonaro teve seu momento aha! ao aterrissar pela primeira vez em Pequim no ano passado. Declarou: "Estou num país capitalista". Fico me questionando o que ele esperava ver antes de chegar e o que o teria feito tão prontamente chegar à conclusão que enunciou.
Alguns, de fato, preferem tratar o modelo chinês por capitalismo de Estado, enfatizando o papel do setor público na economia e na sociedade.
O governo chinês chama seu modelo de socialismo com características chinesas, ao qual atribui a razão do sucesso do país nas últimas décadas. Que características chinesas são essas, que socialismo é esse?
Empregada desde os tempos de Deng Xiaoping, a expressão refere-se a um modelo que manteve o monopólio do poder político pelo Partido Comunista ao mesmo tempo em que foi promovendo abertura econômica.
Mas socialismo com características chinesas é expressão que também revela muito pouco —e o risco é substituir um rótulo por outro, sem grande ganho de conhecimento.
O fato é que não há categoria precisa para modelo chinês. O país tem regimes político e econômico diferentes dos nossos, numa combinação única no mundo. É necessário tempo e esforço para compreendê-los.
A busca por uma resposta peremptória sobre ser ou não a China um país comunista acaba varrendo para debaixo do tapete a complexidade, as nuances, do modelo. Exemplo: o governo chinês estimula a competição, que pode ser feroz, entre empresas estatais. Coisa de país comunista ou capitalista?
Enquanto o Partido prefere chamar a atenção para os resultados, para a sua capacidade de entrega, seus críticos destacam o que desgostam no regime, como o déficit democrático e a ausência de liberdade de expressão.
Discutir o conteúdo dessas posições faz parte do debate saudável sobre a China —o que naturalmente passa longe dos grupos de WhatsApp.
Sabiamente, Azambuja não se propõe a oferecer uma resposta certeira à pergunta que se fez. Seu ensaio é um bela janela para a China, ainda tão desconhecida de nós. É passeio sem atalhos, sem rótulos, que não cai na tentação de oferecer respostas fáceis para questões difíceis.
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