Na história das pandemias, a tarefa mais difícil e conflituosa reside nas decisões relativas ao processo de retomada, dada a ausência de parâmetros objetivos que abranjam todos os cenários e que permitam aos dirigentes uma decisão inquestionável.
De um lado, o ritmo de afrouxamento do isolamento social assusta uma fração da população mais aquinhoada, cujo único medo é a Covid-19, e que vai fazer uma retomada monitorada e gradual. Do outro, onde figura a população socialmente mais vulnerável, convivendo no cotidiano com muitos outros medos, o afrouxamento elimina um deles, exatamente aquele menos acomodado e que desconfigurou de maneira brusca seu cotidiano de sobrevivência. A tendência deste segmento é restabelecer, de imediato o atendimento de suas necessidades básicas. Para os dois extremos é coerente propor o "distanciamento consciente", por moderar o medo e o desconforto, de um lado, e atenuar os riscos da retomada de "tudo como era antes", do outro.
Em todas as propostas de retomada existe uma excessiva preocupação com as superfícies, muitas vezes em plano superior aos cuidados e orientações relativas à transmissão interpessoal. O risco de contágio a partir de uma superfície é mínimo, quer proveniente da sacola de supermercado, do mobiliário, do sapato, do corrimão ou das paredes. Além disso, passar álcool em gel ou outro desinfetante de maneira obsessiva em tudo é menos efetivo do que a lavagem das mãos.
O "distanciamento consciente" foge do fardo desconfortável do patrulhamento do "isolamento social", catequizando nos cuidados preventivos de acordo com os riscos de contágio, bem como de suas consequências. Esse risco é enorme quando próximo de alguém com proeminentes sintomas de vias aéreas, como tosse persistente e espirros. O risco é menor quando parte de pessoas pré-sintomáticas, desde que o contato físico seja evitado e mantido o uso da máscara. É ainda possível que o risco seja acentuado durante o inverno pelo aumento de manifestações respiratórias, como acontece sazonalmente com o vírus da influenza, e que demanda intensificação dos cuidados.
Nessa forma consciente de distanciamento, pessoas de faixa etária mais avançada, com comorbidades, diabetes, obesidade e doenças cardiovasculares retomam caminhadas externas e encontros com amigos ou familiares assintomáticos, ainda protegidos pela distância e pelo uso da máscara, que pode ser flexibilizado por tempo limitado de exposição durante um jantar.
Nos ambientes de trabalho, comércio e transporte, os cuidados com o comportamento já estão sendo estabelecidos. Agora é hora do cuidado intradomiciliar, onde uma pessoa pré-sintomática pode contagiar todos os membros da família pela proximidade física sem o uso de proteção facial. É importante ter a consciência de que, atualmente, o maior meio de propagação da doença ocorre no agrupamento de familiares, por através de membros que circulam e voltam diariamente para o seu convívio.
A comunidade deve continuar mantendo a preocupação nesses pequenos detalhes, que, se não observados, resultam em grandes danos associados à capacidade de contágio e de destruição deste vírus. Ele pode ainda causar mais perdas de familiares, amigos e conhecidos que sucumbem sem o conforto da presença física da família, sem cerimônias de despedida ou de cultos religiosos atendidos pelos entes queridos.
Existe algum mistério ainda não entendido no desenrolar desta pandemia, que depois de um surto devastador, como ocorreu na Itália, o contágio quase desaparece, mesmo tendo a maioria da população ainda sem anticorpos específicos. Talvez muitas pessoas sejam menos suscetíveis por terem receptores com conformações que não acomodam o vírus ou então portarem imunidade prévia adquirida pela infecção com outros tipos de coronavírus. Entretanto, a abertura das fronteiras da Europa, proposta a partir de julho, convive com a expectativa de uma segunda onda, associada ao maior trânsito de pessoas e aglomerações.
Essa história pode caminhar sendo amenizada, mas só acabará quando uma vacina efetiva estiver disponível.
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