A australiana Robina Courtin, 76, dá aula virtual a brasileiros neste fim de semana
Logo após o almoço do último sábado (20), usuários da plataforma Zoom faziam login para mais uma congregação online. Em meio às quase 400 janelinhas, alguns optam por ligar a câmera: pessoas sozinhas rabiscam cadernos, casais conversam, uns ajeitam a postura, enquanto outros aparecem deitados na cama.
Na teoria, o momento exigiria reverência – afinal, uma monja vai palestrar. No entanto, não só as circunstâncias de isolamento impostas pela pandemia permitem concessões, como a própria venerável Robina Courtin também parece abrir espaço para que se relaxem as formalidades.
O cancelamento de sua viagem ao Brasil por conta do coronavírus transformou os ensinamentos presenciais em conferências virtuais, e é de frente para a câmera que a australiana de 76 anos, que sonhou em ser freira na juventude, fala de maneira muito didática e quase descontraída sobre felicidade, raiva e budismo.
“Sempre fui muito séria nas minhas filosofias. Aos 19 anos, disse adeus a Deus e olá para os garotos. Depois, fui uma hippie muito séria, uma comunista muito séria e pronta para a revolução, e então me tornei uma feminista muito séria”, lembra. “Todas essas filosofias diziam que a fonte do sofrimento era externa, e foi quando conheci uns lamas.”
“Fiquei muito chocada quando ouvi que a mente era a verdadeira fonte, e ainda estou tentando lidar com isso”, explica Robina, ordenada monja em 1977. Discípula de Thubten Yeshe e Zopa Rinpoche, ela trabalha para a Fundação para a Preservação da Tradição Mahayana e falaria no Brasil no Centro de Budismo Tibetano Shiwa Lha, no Rio de Janeiro.
De óculos discretos, postada próxima a uma orquídea branca e uma imagem de buda, Robina diz que “a mente é mais rápida que o Google na hora de criar histórias”.
Explica que o budismo não é moralista, corrige o tradutor simultânea quando entende que ele converteu errado alguma palavra e garante que a chave para a felicidade está em parar de se vitimizar e reprogramar a mente.
Robina, que ainda dará ensinamentos via Zoom para os brasileiros até o próximo domingo (28), conversou com a Folha um dia antes de sua aula inaugural.
A senhora não pôde vir ao Brasil devido à pandemia do coronavírus. Sentiu-se frustrada? Como lidou com este sentimento?
Fiquei muito desapontada. Eu amo os brasileiros. Vocês têm um grande coração e são muito generosos. Espero que no ano que vem eu possa voltar. No entanto, este desapontamento não perturbou a minha mente. Quando nos familiarizamos de um modo profundo com o fato de que a mudança é algo natural, e que, não importa o quanto tentemos, não podemos fazer com que tudo corra exatamente do modo como desejamos, quando realmente aceitamos isso em vez de meramente sabermos disso de uma forma intelectual, podemos então fluir com as mudanças sem que elas nos causem perturbação.
Falando em frustrações, a quarentena tem imposto um grande número delas às pessoas que estão seguindo as orientações da OMS. Acredita que esse processo é mais fácil para algumas pessoas?
As duas principais neuroses que governam nossas vidas se chamam apego e aversão. Palavras simples, mas de alcance muito profundo. O apego é aquela fome emocional dentro de nós que está sempre desesperada por obter apenas as coisas boas, que só consegue suportar quando tudo está correndo bem. Então, quando as coisas não vão bem, como agora, o apego se transforma em aversão. Nós entramos em pânico, não conseguimos tolerar, nos enfurecemos, ficamos atemorizados ou entramos em desespero e depressão. E nós vamos do apego à aversão mil vezes por dia. Gradualmente, no entanto, se trabalhamos nossas mentes, podemos dominar esse processo, aprender a ser corajosos em face da mudança, aprender a nos manter estáveis. Trabalho duro, mas possível.
De que forma o budismo pode nos ajudar em tempos de crise?
A chave para esta compreensão está na abordagem budista da mente. Nós talvez não estejamos tão familiarizados com ela, na nossa cultura moderna, mas ela já está aí há mais de 2.000 anos. Como ressalta o dalai-lama, foram esses incríveis indianos, há mais de 3.000 anos, que iniciaram a investigação da natureza do ser. E nós pensávamos que tinha sido o Sigmund Freud, 100 anos atrás.
O modelo mental budista expõe de modo muito claro os conteúdos da nossa mente, e aqui não estamos falando do cérebro. Esta não é a especialidade do Buda. O que estamos discutindo é o processo cognitivo em si mesmo, interno e subjetivo. Através da prática budista, nós nos familiarizamos, de um modo muito íntimo, com os nossos processos mentais, em um nível mais profundo do que no alcance sugerido pela psicologia moderna. Não é uma coisa mística, é psicologia prática.
A doutrina budista se baseia em entender o sofrimento e o modo como ele é inerente à existência humana. A chave para lidarmos com este momento peculiar do mundo está em aceitar tudo que estamos sendo desafiados a atravessar?
Aceitar as coisas como se apresentam não significa ser passivo, ao contrário. Isto é ser realista. Desse modo temos mais habilidade para enxergar as coisas claramente, e, em vez de resistirmos ou passivamente sucumbirmos a elas, podemos fazer escolhas sábias, podemos nos manter equilibrados.
Por que, na sua visão, tendemos a sofrer mais intensamente quando estamos amedrontados, como hoje?
O medo é a energia de todas estas emoções neuróticas. O apego nos leva a viver em um mundo de fantasia, a desejar desesperadamente que tudo corra bem e, no momento em que as coisas mudam, no momento em que este apego é contrariado, a aversão e o pânico se manifestam. Esta é a fonte do nosso sofrimento.
Qual a sua sugestão para lidarmos com o medo trazido pela pandemia e pela quarentena? O medo de perder parentes, amigos, empregos, dinheiro.
A mudança é a realidade. Saber disso nos leva a sermos mais razoáveis, mais gentis, mais satisfeitos. Saber que, qualquer dia, os nossos entes queridos podem ir embora ou morrer. Que nós podemos perder nosso emprego. Nós sabemos disso. Então, ao vivermos com a realidade da mudança, podemos desfrutar ainda mais das nossas vidas, dos nossos entes queridos, do nosso trabalho. E, quando eles realmente vierem a mudar, é claro que ficaremos tristes, até mesmo de coração partido, mas não perderemos nosso centro, nossa coragem. Nós conseguiremos nos manter firmes, equilibrados.
Também tememos não sermos capazes de ser felizes novamente, depois que a quarentena acabar. O que a senhora diria em relação a isso?
A essência da investigação budista da mente consiste em reconhecer que, como bem sabemos, todos nós experimentamos diversos estados mentais positivos, apropriados e benéficos, como a inteligência, o amor, a compaixão, o perdão, a autoconfiança e assim por diante. Mas nós também experimentamos um bocado de apego, raiva, inveja, depressão, baixa autoestima, arrogância.
Enquanto a neurociência e a psicologia atribuem igual importância a esss estados da mente, considerando-os partes de uma pessoa normal —o que sugere que não seríamos normais se não tivéssemos em nós um pouco de cada um deles—, a abordagem budista é a de que esses estados mentais não fazem verdadeiramente parte do cerne do nosso ser. Em outras palavras, podemos modificá-los, diminuir seu poder. Eles não estão gravados na pedra. E por que razão deveríamos mudá-los? É muito simples. Eles são a causa do nosso sofrimento.
Os casais têm encarado tempos desafiadores, ao terem que compartilhar pequenos espaços por tanto tempo. Existem países onde o número de divórcios aumentou depois do fim da quarentena. A senhora acha que nos falta paciência?
Quando se trata de relacionamentos próximos, nossos problemas com o mundo em geral são simplesmente amplificados. Assim, quanto mais trabalhamos nossa mente, mais nos transformamos, diminuindo o apego, o ciúme e todo o resto. E mais pacientes e compassivos nos tornamos.
Existe a oportunidade de aprendermos alguma coisa sobre espiritualidade durante a quarentena?
À medida que examinamos nossos estados mentais, começamos a reconhecer que as poderosas emoções que experimentamos são uma expressão de histórias conceituais dolorosas, baseadas no medo, baseadas no “eu" e longamente cultivadas, presas no fundo dos nossos ossos. É claro que acreditamos piamente nestas histórias, nunca nos ocorre questionar essas suposições. E, certamente, nunca nos ocorre a possibilidade de transformá-las. Assim, gastamos toda a nossa energia tentando mudar o mundo do lado de fora.
Quando nos tornarmos capazes de questionar e transformar nossas suposições e nossas emoções, poderemos começar a sentir mais compaixão pelos outros seres. Estamos todos no mesmo barco.
ROBINA COURTIN,76
Foi ordenada monja budista no final dos anos 1970. Desde então, trabalha para seus mestres, lama Thubten Yeshe e lama Zopa Rinpoche, e para a fundação para a Preservação da Tradição Mahayana (FPMT). Atuou como diretora editorial da Wisdom Publications, foi editora da Mandala Magazine, diretora executiva do Liberation Prison Project e viaja pelo mundo ministrando ensinamentos sobre o budismo
Nenhum comentário:
Postar um comentário