Nele, atores como Ricardo Darín e Alice Braga leem trechos sobre a epidemia do sono de 'Cem Anos de Solidão'
Um dia, Macondo amanheceu assolada por uma peste. A cidade imaginária inventada por Gabriel García Márquez (1927-2014) que protagoniza "Cem Anos de Solidão" tinha perdido a capacidade de dormir. Por dias, os habitantes ficaram desesperados, testando as mais diferentes técnicas e remédios para adormecer: tomar chás antigos, repetir piadas, nada adiantava.
Até que se acostumaram a isso e seguiram a vida normalmente, até se darem conta de que a peste da insônia trazia outra ainda pior, a do esquecimento. E foi preciso anotar em papeizinhos e etiquetar o nome de todos os objetos e para quê serviam, até mesmo as tetas das vacas. Nelas, se explicava, por exemplo: "daqui se tira leite, que deve se juntar ao café, para fazer café com leite".
"Gabo tinha fixação pelo assunto das pestes. Além da doença da insônia que está em 'Cem Anos de Solidão', escreveu 'O Amor nos Tempos do Cólera', que também tem uma epidemia dando o tom do romance", diz à Folha o diretor e produtor venezuelano Leonardo Aranguibel.
Aranguibel acaba de disponibilizar, de forma gratuita, o curta-metragem "La Peste del Insomnio". O filme pode ser encontrado no site da Fundação Gabo e no Youtube.
Nele, mais de 30 atores latino-americanos leem trechos de "Cem Anos de Solidão" que descrevem a epidemia que põe Macondo em uma quarentena, parecida com a que boa parte do mundo vive hoje.
Estão na lista Ricardo Darín e Leonardo Sbaraglia (Argentina), Alice Braga (Brasil), Andrés Parra (o Pablo Escobar da minissérie "El Patrón del Mal") e Ana María Orozco (Colômbia), Hector Bonilla e Dolores Heredia (México), Rebeca Alemán (Venezuela) e Luis Gnecco (Chile), entre outros.
"O projeto surgiu quando havia ainda muita incerteza sobre a Covid-19, tínhamos sido surpreendidos pela quantidade de mortos e contágios na Europa e tentávamos nos adaptar ao confinamento das quarentenas", explica Aranguibel, que vive em Miami.
"Foi então que me lembrei de como a obra literária de Gabo abordava esse sentimento de forma literária, e ainda deixava uma mensagem de esperança, e por isso comecei a convidar amigos e produtores para armar o filme."
As cenas dos atores lendo em uma espécie de jogral estão misturadas a imagens de cidades icônicas da região: Buenos Aires, Bogotá, São Paulo, Cidade do México. Nenhum integrante do projeto cobrou um centavo, e o curta já tem mais de 300 mil visualizações na internet. Falado em espanhol, está disponível com legendas em inglês e português.
Ao final, a mensagem de esperança, que poderia ser comparada à vacina ou à cura para o coronavírus, é trazida pelo personagem Melquíades —o sábio que habitou Macondo antes de partir pelo mundo e morrer. Ele retorna da morte e, apesar de ninguém mais no povoado lembrar-se mais da cara dele, um dia bate na porta dos Buendía, a família cujas gerações marcam a história do livro.
"Nós estamos assim, esperando um Melquíades, que volte da morte e nos traga a solução. A diferença da ficção, por enquanto, é que existe um Melquíades que retorna e traz a cura. Para o coronavírus, esperamos que nosso Melquíades seja a ciência, mas ainda não sabemos. E essa incerteza humana está muito bem descrita em toda a obra de Gabo", conclui Aranguibel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário