21 de junho de 2020 | 05h00
Como as reservas seriam “excessivas”, pois devido à recessão estamos caminhando para um superávit nas contas correntes, não teríamos de nos preocupar em reduzi-las. Nunca, em toda a minha carreira de economista, com mais de 45 anos como professor, vi tantos erros em um único argumento.
Erro #1: Do ponto de vista contábil, o déficit nas contas correntes é o excesso das importações de bens e serviços (mercadorias, fretes, seguros, viagens internacionais) sobre as exportações, mas, do ponto de vista econômico, ela é o excesso da absorção doméstica (consumo das famílias, mais investimentos em capital fixo, mais o consumo do governo) sobre o PIB. Se destinarmos 5% do PIB para os investimentos em capital fixo (é isto que são os investimentos em infraestrutura), elevaremos a absorção em 5 pontos de porcentagem do PIB, o que significa que, se as contas correntes estivessem em equilíbrio, chegaríamos a um déficit de 5% do PIB.
Como nesta recessão caminhamos para um pequeno superávit nas contas correntes, com esta medida chegaríamos a um déficit um pouco menor do que 5% do PIB.
Erro #2: O que interessa não é apenas o saldo em contas correntes, e sim o do balanço de pagamentos como um todo, que inclui a conta financeira e de capitais. Toda a acumulação de reservas realizada pelo Brasil foi exclusivamente devida aos superávits nas contas financeira e de capitais, com contribuições importantes dos investimentos estrangeiros diretos e dos investimentos em carteira. O maior supridor de investimentos estrangeiros diretos no Brasil é a Europa Ocidental, cuja recessão é mais profunda e será mais longa do que a dos EUA, limitando o apetite (e a capacidade) de suas empresas investirem nas subsidiárias brasileiras.
Estas, por seu turno, diante da recessão, veem seus lucros no Brasil desabarem, o que as impede de contribuir através do reinvestimento de lucros e dividendos no País, que historicamente respondem por 20% dos investimentos diretos. Para dar uma ideia de qual pode ser a queda total basta comparar a média dos últimos cinco anos, de US$ 60 bilhões por ano, com o ingresso de apenas US$ 25 bilhões durante a crise menos profunda de 2008/09.
Erro #3: O argumento ignora os investimentos em carteira, que contribuem com mais de um terço dos ingressos na conta financeira e de capitais. Contrariamente aos investimentos diretos, estes são voláteis e sensíveis à percepção de risco por parte de investidores não residentes. Sempre tivemos ingressos líquidos, que em alguns anos atingiram US$ 60 bilhões e em outros perto de US$ 80 bilhões, mas a partir da perda do grau de investimento passamos a enfrentar saídas, que nos últimos 12 meses chegaram a US$ 60 bilhões, com grande aceleração após o início da pandemia e a piora da situação fiscal. A soma de investimentos diretos e em carteira já tornou a conta financeira e de capitais deficitária, e esse déficit deve aumentar.
Erro #4: O argumento ignora o efeito combinado nas contas correntes e de capitais. Com o retorno do déficit nas contas correntes e com o aumento da percepção do risco fiscal que eleva as saídas dos investimentos em carteira, há um aumento do déficit na balança de pagamentos que acentua a queda de reservas e deprecia o real. Em vez de limitar os gastos de reservas a 5% do PIB – o plano original de investimentos –, teremos uma perda adicional de reservas vinda do aumento do déficit no balanço de pagamentos.
Erro #5: Superávits no balanço de pagamentos levam à valorização cambial, enquanto déficits levam à depreciação. Ou seja, quanto mais ambicioso for o “programa de investimentos baseado em reservas”, maior será o déficit no balanço de pagamentos e mais intensa a depreciação cambial. Para estancar este movimento, o Banco Central seria condenado a elevar a taxa de juros em meio a uma recessão profunda.
Erro #6: Vender reservas para gastar em infraestrutura é igual a emitir moeda para o mesmo propósito, o que somente não seria um erro para os adeptos da MMT.
Em conclusão, é melhor abandonar essa ideia estapafúrdia, que não faz o menor sentido.
*EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE
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