A máquina política que sustentou a ditadura brasileira não foi apenas autoritária e repressora. Foi também dissimulada.
Durante seus 21 anos, o regime militar cultivou uma miragem democrática.
Ao contrário do Chile, não concentrou poder em um único general, mas o dividiu entre cinco presidentes (além de uma breve junta militar).
Diferentemente da Argentina, manteve o Congresso aberto por praticamente todo o período e tolerou a existência de uma oposição formal.
“Foi uma ditadura em condomínio. Mas era ditadura do mesmo jeito”, diz o historiador Boris Fausto, estudioso do período militar.
“Nunca houve eleição. O Alto Comando do Exército discutia, brigava e votava. Fazia as vezes de povo”, prossegue.
Na teoria, havia respeito a um dos princípios basilares da democracia, o da separação de Poderes. Mas era apenas um verniz, diz o professor, porque o Executivo era um Poder armado, e portanto, superior aos demais.
“Havia separação de Poderes com subordinação ao Executivo. Forte subordinação.”
Não foram poucas as vezes em que a condição de primus inter pares do Executivo se manifestou, entre 1964 e 1985.
Seu instrumento principal foram os Atos Institucionais (AIs), dando formatação jurídica ao regime. Houve 17.
A interferência sobre o Legislativo não tardou, começando já no décimo dia do golpe, 9 de abril de 1964, com o AI-1, que cassou 41 deputados.
Passou pelo AI-5, de 1968, que consolidou a castração do Congresso, e chegou ao Pacote de Abril, de 1977, com a nomeação de senadores “biônicos”, escolhidos em colégio eleitoral controlado pelo Executivo.
Um dos atos institucionais que tiveram consequências mais duradouras para o arcabouço político foi o nº 2, de outubro de 1965, que instituiu o bipartidarismo, fixando a Arena (Aliança Renovadora Nacional) como representante do governo e confinando a oposição ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro).
“Inicialmente, a suposição dos militares era a de que estabelecer uma oposição consentida, sem elementos mais radicais como os comunistas, a tornaria mais maleável, mais controlável. Esse ambiente gerou, ao menos no princípio, uma certa imagem positiva no exterior, que interessava ao novo regime”, diz Fausto.
Mas a manobra se relevaria um tiro no pé a partir de meados dos anos 1970, quando o MDB crescia e se consolidava como uma força opositora.
Figuras importantes do regime, como o general Golbery do Couto e Silva, acabariam por considerar que o bipartidarismo tinha sido um erro.
“O modelo de dois partidos unificou a oposição, ali cabiam de liberais a conservadores”, afirma o historiador.
Isso levou o regime a autorizar novas legendas, entre elas o PT, no fim dos anos 1970, como uma estratégia para tentar fragmentar a oposição.
Deputado estadual e senador pelo MDB do Rio Grande do Sul durante a ditadura, Pedro Simon afirma que seu partido “tinha de tudo”. “Tinha até gente de mentirinha, cara que era fechado com a ditadura”.
Ele lembra que havia duras e frequentes discussões sobre até que ponto era o caso de participar do jogo político em condições farsescas. “Valia a pena? Era a pergunta que o povão fazia pra nós”, afirma.
Segundo Simon, o que mais dividia o partido era a maneira de fazer essa oposição consentida. “Luta armada, a maioria era contra, não apenas porque tinha medo, mas porque não havia chance de sucesso. Tudo no país era da Arena. A igreja, as instâncias políticas, tudo.”
Sua posição, afirma, sempre foi a de aproveitar os espaços disponíveis para pressionar o regime a ceder em quatro pontos fundamentais: eleições diretas, Constituinte, fim da tortura e liberdade de imprensa. “Eu defendia resistir até o último guichê disponível”, diz.
Foi com essa atitude de enfrentar o regime por dentro, lembra o ex-senador, que cresceu a figura de Ulysses Guimarães, principal expoente do MDB durante praticamente todo o período autoritário.
"O Ulysses foi a grande personalidade da história do Brasil naquele momento. Bateu na mesa, resistiu. Seu único erro foi não ter assumido a Presidência com a morte do Tancredo [Neves], ter deixado para o [José] Sarney. Deveria ter assumido e convocado eleições diretas.”
A chegada de Simon ao Senado em 1978, eleito democraticamente, ocorreu quase simultaneamente à nomeação dos colegas biônicos.
“O Pacote de Abril foi o último bafo da ditadura. Foi uma desgraça. Mas o povo reagiu do nosso lado, foi uma coisa fantástica”, lembra.
O Judiciário não sofreu menos, sobretudo o Supremo.
O mesmo AI-2 que instituiu o bipartidarismo inflou o STF de 11 para 16 membros, com os 5 extras escolhidos a dedo pelo regime. A ideia era diluir vozes opositoras.
Não satisfeitos, os militares, já anabolizados pelo AI-5, cassaram três ministros em 1969, que consideravam de esquerda: Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
Outros dois, em protesto, saíram por conta própria: Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada.
Com a corte já “sanitizada” aos olhos do regime, as cinco vagas abertas não foram preenchidas, e o número de 11 ministros foi restabelecido, tamanho que perdura até hoje.
Como instância de controle constitucional de um sistema que não respeitava direitos fundamentais, e com a ameaça de cassação de ministros sempre por perto, o STF teve um papel secundário durante a ditadura, muito distante do estrelato dos dias de hoje.
Isso gerava grande frustração nos membros mais independentes da corte, como ficou evidente em um episódio teatral ocorrido em 1971.
Inconformado com a decisão do STF de considerar constitucional a censura prévia, o ministro Adauto Lúcio Cardoso, que havia sido voto vencido, levantou-se no meio da sessão, pendurou sua toga na cadeira e abandonou o plenário do tribunal. Em seguida, requereu sua aposentadoria.
O gesto causou comoção na imprensa, algo incomum para uma corte que tinha a discrição como marca.
“Naquela época, o poder estava realmente concentrado no governo militar. O STF tinha suas competências totalmente podadas. Era uma situação de humilhação, mais do que de conflito”, diz o ex-ministro do STF Francisco Rezek, nomeado duas vezes para a corte, a primeira delas na reta final do regime, em 1983.
Segundo Rezek, o Judiciário só teve algum grau de independência entre 1964 e 1968 e após o fim do AI-5, em 1979.
“Por cima da Constituição, cavalgava o AI-5. Com a edição deste ato, o Brasil passou a conviver com uma ordem institucional paralela, que neutralizava por completo as garantias individuais”, diz.
O ato fechou o Congresso por quase um ano, cassou autoridades, endureceu a censura, abriu as portas para a repressão violenta e suspendeu o habeas corpus para acusações de cunho político.
Tudo, relembra o ex-ministro, era visto sob a ótica da segurança nacional, o que limitava em muito os direitos individuais.
“A temática da segurança nacional era interpretada do modo mais extensivo possível pelo regime. Isso levou o Aliomar Baleeiro [presidente do STF entre 1971 e 1973] a dizer que não dava mais para respirar diante da superinflação do conceito”, afirma Rezek.
Num discurso famoso, Baleeiro reclamou que até batom de moça e cigarro de maconha eram “segurança nacional”.
A superemenda constitucional de 1969, tão ampla que muitos a consideram uma nova Constituição, incorporou os princípios do AI-5 à Carta que existia desde 1967.
Uma rápida olhada em seu capítulo sobre direitos e garantias individuais mostra como tais conceitos, na realidade, não significavam muita coisa na prática.
O artigo 153 da Carta, por exemplo, fazia uma longa defesa da livre manifestação de pensamento e de convicção política ou filosófica, mas incluía uma ressalva que na prática anulava tudo. “Não serão toleradas a subversão da ordem e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”, dizia o texto.
O artigo seguinte, o 154, era ainda mais direto. “O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos”.
Com o fim do AI-5, diz Rezek, o STF teve mais liberdade para julgar e passou a ser refúgio para opositores que queriam contestar pontos do regime.
“A oposição percebeu esse novo momento e passou a reverenciar o STF. Recorriam com alguma frequência, muito como se faz hoje”.
O restabelecimento pleno do sistema de freios e contrapesos representado pela separação de Poderes veio apenas com o término da ditadura, em 1985, o que foi consolidado pela Constituição de 1988.
Só então o alicerce democrático foi refeito, apesar do que tentam fazer crer atualmente os apologistas daquele período.
Principais atos institucionais
AI-1
De 9.abr.1964, institucionalizou o golpe e criou um colégio eleitoral para escolher o presidente; gerou a primeira onda de cassações e suspensão de direitos políticos
AI-2
De 27.out.1965, estabeleceu o bipartidarismo e inflou o STF, que passou de 11 para 16 ministros
AI-5
De 13.dez.1968, endureceu o regime, com o fechamento do Congresso, censura, cassação de mandatos e restrição do habeas corpus
Os instrumentos jurídicos do regime
Lei de Segurança Nacional
Teve diversas versões, entre 1967 e 1983 (esta última, em vigor até hoje); com formulação genérica, deu poderes ao Estado para agir contra cidadãos que ameacem a ordem, a soberania e as instituições
Constituição de 1967
Entrou em vigor em 15.mar.1967 e consolidou todo o arcabouço jurídico do golpe, incluindo atos institucionais e decretos-lei
Emenda constitucional de 1969
Tão abrangente que é considerada por muitos uma nova Constituição, endureceu o regime à luz do AI-5 e centralizou ainda mais o poder no Executivo
Lei da Anistia
Sancionada em 28.ago.1979 após intensa pressão popular, anistiou crimes políticos cometidos pelo regime e seus opositores desde 1961, o que contribuiu para viabilizar a transição democrática, mas deu origem a um sentimento de impunidade que se mantém até hoje
Os comandantes da ditadura
Humberto Castello Branco (1964-67) um dos líderes do golpe, seu governo criou o SNI (Serviço Nacional de Informações), instituiu o bipartidarismo e extinguiu a eleição direta para presidente
Arthur da Costa e Silva (1967-69) decretou o AI-5, que endureceu a repressão e a censura
Junta Militar (ago a out de 1969), formada pelo almirante Augusto Rademaker, o general Aurélio Lyra Tavares e o brigadeiro Márcio de Souza e Mello, assumiu o poder com o afastamento de Costa e Silva por motivo de doença
Emílio Médici (1969-74) foi o presidente da fase mais repressiva da ditadura, com tortura e morte de opositores, e também do “milagre econômico”
Ernesto Geisel (1974-79) articulou a abertura “lenta, gradual e segura”; em 1977, fechou o Congresso por meio do “pacote de abril”
João Baptista Figueiredo (1979-85) conduziu a fase final do regime, com a Lei da Anistia e a volta do multipartidarismo; em seu governo ocorreu o atentado do Riocentro
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