segunda-feira, 29 de junho de 2020

Dissimulada, ditadura militar criou miragem de separação de Poderes, FSP

SÃO PAULO

A máquina política que sustentou a ditadura brasileira não foi apenas autoritária e repressora. Foi também dissimulada.

Durante seus 21 anos, o regime militar cultivou uma miragem democrática.

Ao contrário do Chile, não concentrou poder em um único general, mas o dividiu entre cinco presidentes (além de uma breve junta militar).

Diferentemente da Argentina, manteve o Congresso aberto por praticamente todo o período e tolerou a existência de uma oposição formal.

“Foi uma ditadura em condomínio. Mas era ditadura do mesmo jeito”, diz o historiador Boris Fausto, estudioso do período militar.

“Nunca houve eleição. O Alto Comando do Exército discutia, brigava e votava. Fazia as vezes de povo”, prossegue.

Na teoria, havia respeito a um dos princípios basilares da democracia, o da separação de Poderes. Mas era apenas um verniz, diz o professor, porque o Executivo era um Poder armado, e portanto, superior aos demais.

“Havia separação de Poderes com subordinação ao Executivo. Forte subordinação.”

Não foram poucas as vezes em que a condição de primus inter pares do Executivo se manifestou, entre 1964 e 1985.

Seu instrumento principal foram os Atos Institucionais (AIs), dando formatação jurídica ao regime. Houve 17.

A interferência sobre o Legislativo não tardou, começando já no décimo dia do golpe, 9 de abril de 1964, com o AI-1, que cassou 41 deputados.

Passou pelo AI-5, de 1968, que consolidou a castração do Congresso, e chegou ao Pacote de Abril, de 1977, com a nomeação de senadores “biônicos”, escolhidos em colégio eleitoral controlado pelo Executivo.

Um dos atos institucionais que tiveram consequências mais duradouras para o arcabouço político foi o nº 2, de outubro de 1965, que instituiu o bipartidarismo, fixando a Arena (Aliança Renovadora Nacional) como representante do governo e confinando a oposição ao MDB (Movimento Democrático Brasileiro).

“Inicialmente, a suposição dos militares era a de que estabelecer uma oposição consentida, sem elementos mais radicais como os comunistas, a tornaria mais maleável, mais controlável. Esse ambiente gerou, ao menos no princípio, uma certa imagem positiva no exterior, que interessava ao novo regime”, diz Fausto.

Mas a manobra se relevaria um tiro no pé a partir de meados dos anos 1970, quando o MDB crescia e se consolidava como uma força opositora.

Figuras importantes do regime, como o general Golbery do Couto e Silva, acabariam por considerar que o bipartidarismo tinha sido um erro.

“O modelo de dois partidos unificou a oposição, ali cabiam de liberais a conservadores”, afirma o historiador.

A imagem em preto e branco mostra o Humberto de Alencar Castello Branco, presidente do Brasil entre 1964 e 1967
O general Humberto de Alencar Castello Branco, presidente do Brasil entre 1964 e 1967 - Folhapress

Isso levou o regime a autorizar novas legendas, entre elas o PT, no fim dos anos 1970, como uma estratégia para tentar fragmentar a oposição.

Deputado estadual e senador pelo MDB do Rio Grande do Sul durante a ditadura, Pedro Simon afirma que seu partido “tinha de tudo”. “Tinha até gente de mentirinha, cara que era fechado com a ditadura”.

Ele lembra que havia duras e frequentes discussões sobre até que ponto era o caso de participar do jogo político em condições farsescas. “Valia a pena? Era a pergunta que o povão fazia pra nós”, afirma.

Segundo Simon, o que mais dividia o partido era a maneira de fazer essa oposição consentida. “Luta armada, a maioria era contra, não apenas porque tinha medo, mas porque não havia chance de sucesso. Tudo no país era da Arena. A igreja, as instâncias políticas, tudo.”

Sua posição, afirma, sempre foi a de aproveitar os espaços disponíveis para pressionar o regime a ceder em quatro pontos fundamentais: eleições diretas, Constituinte, fim da tortura e liberdade de imprensa. “Eu defendia resistir até o último guichê disponível”, diz.

Foi com essa atitude de enfrentar o regime por dentro, lembra o ex-senador, que cresceu a figura de Ulysses Guimarães, principal expoente do MDB durante praticamente todo o período autoritário.

"O Ulysses foi a grande personalidade da história do Brasil naquele momento. Bateu na mesa, resistiu. Seu único erro foi não ter assumido a Presidência com a morte do Tancredo [Neves], ter deixado para o [José] Sarney. Deveria ter assumido e convocado eleições diretas.”

A chegada de Simon ao Senado em 1978, eleito democraticamente, ocorreu quase simultaneamente à nomeação dos colegas biônicos.

“O Pacote de Abril foi o último bafo da ditadura. Foi uma desgraça. Mas o povo reagiu do nosso lado, foi uma coisa fantástica”, lembra.

O Judiciário não sofreu menos, sobretudo o Supremo.

O mesmo AI-2 que instituiu o bipartidarismo inflou o STF de 11 para 16 membros, com os 5 extras escolhidos a dedo pelo regime. A ideia era diluir vozes opositoras.

Não satisfeitos, os militares, já anabolizados pelo AI-5, cassaram três ministros em 1969, que consideravam de esquerda: Vitor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.

Outros dois, em protesto, saíram por conta própria: Gonçalves de Oliveira e Lafayette de Andrada.

Com a corte já “sanitizada” aos olhos do regime, as cinco vagas abertas não foram preenchidas, e o número de 11 ministros foi restabelecido, tamanho que perdura até hoje.

Como instância de controle constitucional de um sistema que não respeitava direitos fundamentais, e com a ameaça de cassação de ministros sempre por perto, o STF teve um papel secundário durante a ditadura, muito distante do estrelato dos dias de hoje.

Isso gerava grande frustração nos membros mais independentes da corte, como ficou evidente em um episódio teatral ocorrido em 1971.

Na imagem em preto e branco, um tanques de guerra estão no meio de uma rua em meio a prédios
Tanques do Exército passam pelas ruas de São Paulo (SP), em 14 de Abril de 1964 - João Marques/Acervo UH/Folhapress

Inconformado com a decisão do STF de considerar constitucional a censura prévia, o ministro Adauto Lúcio Cardoso, que havia sido voto vencido, levantou-se no meio da sessão, pendurou sua toga na cadeira e abandonou o plenário do tribunal. Em seguida, requereu sua aposentadoria.

O gesto causou comoção na imprensa, algo incomum para uma corte que tinha a discrição como marca.

“Naquela época, o poder estava realmente concentrado no governo militar. O STF tinha suas competências totalmente podadas. Era uma situação de humilhação, mais do que de conflito”, diz o ex-ministro do STF Francisco Rezek, nomeado duas vezes para a corte, a primeira delas na reta final do regime, em 1983.

Segundo Rezek, o Judiciário só teve algum grau de independência entre 1964 e 1968 e após o fim do AI-5, em 1979.

“Por cima da Constituição, cavalgava o AI-5. Com a edição deste ato, o Brasil passou a conviver com uma ordem institucional paralela, que neutralizava por completo as garantias individuais”, diz.

O ato fechou o Congresso por quase um ano, cassou autoridades, endureceu a censura, abriu as portas para a repressão violenta e suspendeu o habeas corpus para acusações de cunho político.

​Tudo, relembra o ex-ministro, era visto sob a ótica da segurança nacional, o que limitava em muito os direitos individuais.

“A temática da segurança nacional era interpretada do modo mais extensivo possível pelo regime. Isso levou o Aliomar Baleeiro [presidente do STF entre 1971 e 1973] a dizer que não dava mais para respirar diante da superinflação do conceito”, afirma Rezek.

Num discurso famoso, Baleeiro reclamou que até batom de moça e cigarro de maconha eram “segurança nacional”.

A superemenda constitucional de 1969, tão ampla que muitos a consideram uma nova Constituição, incorporou os princípios do AI-5 à Carta que existia desde 1967.

Uma rápida olhada em seu capítulo sobre direitos e garantias individuais mostra como tais conceitos, na realidade, não significavam muita coisa na prática.

O artigo 153 da Carta, por exemplo, fazia uma longa defesa da livre manifestação de pensamento e de convicção política ou filosófica, mas incluía uma ressalva que na prática anulava tudo. “Não serão toleradas a subversão da ordem e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”, dizia o texto.

O artigo seguinte, o 154, era ainda mais direto. “O abuso de direito individual ou político, com o propósito de subversão do regime democrático ou de corrupção, importará a suspensão daqueles direitos de dois a dez anos”.

Com o fim do AI-5, diz Rezek, o STF teve mais liberdade para julgar e passou a ser refúgio para opositores que queriam contestar pontos do regime.

“A oposição percebeu esse novo momento e passou a reverenciar o STF. Recorriam com alguma frequência, muito como se faz hoje”.

O restabelecimento pleno do sistema de freios e contrapesos representado pela separação de Poderes veio apenas com o término da ditadura, em 1985, o que foi consolidado pela Constituição de 1988.

Só então o alicerce democrático foi refeito, apesar do que tentam fazer crer atualmente os apologistas daquele período.


​Principais atos institucionais​

AI-1
De 9.abr.1964, institucionalizou o golpe e criou um colégio eleitoral para escolher o presidente; gerou a primeira onda de cassações e suspensão de direitos políticos

AI-2
De 27.out.1965, estabeleceu o bipartidarismo e inflou o STF, que passou de 11 para 16 ministros

AI-5
De 13.dez.1968, endureceu o regime, com o fechamento do Congresso, censura, cassação de mandatos e restrição do habeas corpus


Os instrumentos jurídicos do regime

Lei de Segurança Nacional 
Teve diversas versões, entre 1967 e 1983 (esta última, em vigor até hoje); com formulação genérica, deu poderes ao Estado para agir contra cidadãos que ameacem a ordem, a soberania e as instituições

Constituição de 1967 
Entrou em vigor em 15.mar.1967 e consolidou todo o arcabouço jurídico do golpe, incluindo atos institucionais e decretos-lei

Emenda constitucional de 1969
Tão abrangente que é considerada por muitos uma nova Constituição, endureceu o regime à luz do AI-5 e centralizou ainda mais o poder no Executivo

Lei da Anistia
Sancionada em 28.ago.1979 após intensa pressão popular, anistiou crimes políticos cometidos pelo regime e seus opositores desde 1961, o que contribuiu para viabilizar a transição democrática, mas deu origem a um sentimento de impunidade que se mantém até hoje​


Os comandantes da ditadura

Humberto Castello Branco (1964-67) um dos líderes do golpe, seu governo criou o SNI (Serviço Nacional de Informações), instituiu o bipartidarismo e extinguiu a eleição direta para presidente

Arthur da Costa e Silva (1967-69) decretou o AI-5, que endureceu a repressão e a censura

Junta Militar (ago a out de 1969), formada pelo almirante Augusto Rademaker, o general Aurélio Lyra Tavares e o brigadeiro Márcio de Souza e Mello, assumiu o poder com o afastamento de Costa e Silva por motivo de doença

Emílio Médici (1969-74) foi o presidente da fase mais repressiva da ditadura, com tortura e morte de opositores, e também do “milagre econômico”

Ernesto Geisel (1974-79) articulou a abertura “lenta, gradual e segura”; em 1977, fechou o Congresso por meio do “pacote de abril”

João Baptista Figueiredo (1979-85) conduziu a fase final do regime, com a Lei da Anistia e a volta do multipartidarismo; em seu governo ocorreu o atentado do Riocentro

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