Em artigo, socióloga recorda mobilização de diversos setores da sociedade contra o regime militar
Maria Victoria Benevides
Brasileiras e brasileiros, fiéis deste tenebroso desgoverno, foram às ruas mais de uma vez pedir intervenção militar e a volta do AI-5. A maioria deles provavelmente não viveu e nem sabe direito do que se trata. Claro que há, também, além da ignorância e cegueira ideológica, a má-fé e os interesses vis.
Como sei e vivi aqueles tempos do regime civil-militar inaugurado pelo golpe de 1964, pretendo lembrar alguns aspectos da resistência democrática de então. Lembranças estimuladas pela situação atual: apesar da pandemia, grupos e movimentos sociais, alarmados com a crescente ameaça fascista, se lançam em manifestos, passeatas e manifestações várias pela democracia, o Estado de Direito e contra o racismo.
A revogação do Ato Institucional nº5, junto com outros atos da ditadura, ocorreu justamente no último dia de 1978 e refrescou um pouquinho o nosso Réveillon. Mas é claro que estávamos conscientes de que, para todos os que queríamos infinitamente mais do que a “abertura lenta, gradual e segura” do general Geisel, permanecia grande parte do “entulho autoritário” –como as Medidas de Emergência e nova Lei de Segurança Nacional. A luta pela Anistia e pelas causas dos trabalhadores, a denúncia do horror do sistema carcerário e da violência policial contra os mais vulneráveis seguiam firmes em boa parte do o país, com destaque para as capitais do Rio e de São Paulo, onde eu vivia.
Do golpe de 64 até então, foi o terror do Estado, com cassações, censura, repressão de todo tipo, prisões ilegais, tortura e morte, desaparecimentos forçados ...o medo era quotidiano e foi aos poucos que a assim chamada “sociedade civil” começou a ter mais visibilidade, até mesmo como expressão utilizada na imprensa.
Um exemplo é a Comissão Justiça e Paz de São Paulo, criada e liderada pelo arcebispo dom Paulo Evaristo Arns em 1972. Iniciou-se clandestinamente (a fase que chamamos de “catacumbas”), mas logo assumiu o papel de voz e defesa dos presos e perseguidos. Reunindo juristas, advogados, jornalistas, sociólogas, militantes operários de fé e coragem, contribuiu para construir um novo tipo de luta social e política: a defesa dos direitos humanos de todos. Naqueles tempos a CJP foi, para muitos –brasileiros e sul-americanos– a única porta aberta em socorro às vítimas da ditadura.
A Ordem dos Advogados do Brasil, entidade que, de certa forma, encabeçava a sociedade civil, inclusive por sua expressão nacional, organizou sua conferência, em julho de 1974, sobre o tema amplo dos Direitos Humanos. Foi parceira ativa da CJP em vários eventos, como os dois Tribunal Tiradentes, o primeiro sobre a Lei de Segurança Nacional e o outro sobre o Colégio Eleitoral, quando o Teatro Municipal, pela primeira vez, foi aberto para todo o povo. Estivemos juntos nas lutas pela Anistia, pelas Diretas e pela Constituinte livre e soberana.
A imprensa estava sob censura, mas nós, da CJP, conseguimos escrever artigos e publicar livros, com destaque para dois: "São Paulo: Crescimento e Pobreza" e "Brasil-Nunca Mais". Ambos correram o mundo.
O assassinato de Vladimir Herzog e a missa rezada na Catedral (outubro de 1975) sob forte vigilância policial, marcou o tipo de resposta que a sociedade civil –incluindo muitos jovens– estava disposta a dar ao arbítrio. Os estudantes, muito visados, voltaram para as ruas, sobretudo depois da invasão da PUC pela polícia e as prisões continuavam. Nas tradicionais arcadas da Faculdade de Direito, a resistência revelou-se com a leitura da “Carta aos Brasileiros”, escrita e lida com o fervor do ilustre e querido professor Goffredo Telles Junior
Explode em todo o país a campanha pela Anistia ampla, geral e irrestrita, mobilizando um arco de forças democráticas, como a UNE, o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e o Movimento Negro Unificado, entre outros.
É importante destacar a presença constante, desde o início, em 1975, do Movimento Feminino pela Anistia. As mulheres foram batalhadoras incansáveis. O projeto elaborado pelo governo Figueiredo é aprovado pelo Congresso em agosto de 1979, com várias falhas e restrições, a pior delas a auto-anistia concedida aos torturadores que até hoje é tema de luta. O Brasil é o único país da América Latina que não julgou os autores dos crimes contra a humanidade.
Os advogados da comissão trabalharam sem trégua na defesa dos presos políticos, no apoio às famílias dos “desaparecidos”, e mais tarde na defesa dos grevistas.
A partir do final da década, a CJP acompanha e participa de um processo de mobilização que criou novos sujeitos políticos na sociedade civil: os operários organizados na reivindicação dos direitos sociais e econômicos, sempre negligenciados. O chamado “novo sindicalismo” repudia o sindicato pelego e, na luta por moradia, educação, saúde, transporte, terra para quem nela trabalha, une-se a outros grupos também em defesa das liberdades individuais e coletivas, inclusive nas greves, na construção da cidadania democrática.
No final dos anos 70, a relação da CJP com o novo sindicalismo intensificou-se, sobretudo no ABC paulista, e várias igrejas abriram suas portas para as assembleias e participaram do fundo de greve. Neste momento, avulta a liderança do metalúrgico Luiz Inácio da Silva e do bispo dom Claudio Hummes. Essa região ficou conhecida como a República de São Bernardo. As mulheres tiveram intensa participação, além da organização de corajosas passeatas.
O assassinato pelas forças policiais do líder Santo Dias, da Pastoral Operária, depois da prisão de centenas de metalúrgicos, em outubro de 1979, é outro momento importante da frente comum que reunia classe média e grupos populares, como ocorreu também com o Movimento contra o Custo de Vida.
Continua a invasão de igrejas, ameaças de morte e sequestros. Dalmo Dallari e José Carlos Dias, presidentes da CJP, foram sequestrados e presos (hoje estão na Comissão Arns, junto com Margarida Genevois, também ex-presidente da CJP).
O engajamento de padres e bispos aprofundou-se, inclusive com apoio do exterior. O clamor pelo fim do regime militar e da LSN marcou os anos 80 e o crescimento de grupos da sociedade civil que se envolviam na mobilização, que então contava com intelectuais ilustres, universitários e artistas, além dos religiosos e dos operários.
A partir de então, com o retorno dos anistiados e decréscimo da violência contra os opositores do regime, a CJP dedica-se ao acompanhamento da violência policial, não mais dirigida contra os “subversivos”, mas sobretudo sobre o povo mais pobre e discriminado em tudo, inclusive por abusos racistas. A luta por liberdades democráticas continua com a força da sociedade civil. Em agosto de 1980, um ato público no Tuca reúne a CJP, ABI, UNE e mais 150 entidades que denunciam atentados e ameaças a advogados, sindicatos e bancas de jornal.
Em 1984, explodem os comícios por eleições Diretas. As camisetas amarelas expressavam exatamente o contrário de hoje, com a inscrição Diretas Já! Como escrevi na época “Futebol e samba deixaram de ser, felizmente, as únicas unanimidades nacionais".
A extraordinária mobilização pelas diretas revelou a força e a extensão de um “novo Brasil”. Com a derrota no Congresso, inicia-se a mobilização nacional pela Constituinte. A CJP participa intensamente da criação de “Plenários Pró-Participação Popular na Constituinte” pelo país afora. Foi um novo momento de luta, esta essencialmente política, com a exigência da convocação de uma Constituinte soberana (e não congressual, que acabou ocorrendo) com o apoio de entidades como a OAB, CUT, CNBB e Andes.
Foi justamente esse aspecto “político” que contribuiu para o fracasso da convocação livre e soberana.
Houve o evidente interesse eleitoral e partidário, além da ignorância sobre as questões jurídicas que estavam em jogo para grande parte do povo.
A nova Constituição foi aprovada em outubro de 1988, exatamente dez anos depois do fim do AI-5. Foi uma década de aguda crise econômica e política, mas também de efervescência da sociedade civil. Muito aprendemos, apesar dos erros e das divisões. Que a lembrança desses tempos, apesar da imensa diferença histórica com o momento presente, nos ilumine, pelo menos no que permanece como um mantra gramsciano: Pessimista no diagnóstico, mas otimista na vontade, na ação.
Saudades de dom Paulo. Ele enfrentou o pior da ditadura e sempre nos animava com a saudação: Coragem!
Maria Victoria Benevides é socióloga e membro da Comissão Arns; foi integrante da Comissão Justiça e Paz
Nenhum comentário:
Postar um comentário