terça-feira, 23 de junho de 2020

Não há paixão mais letal do que a que sentimos pela nossa virtude, João Pereira Coutinho, FSP

1. Soube através desta Folha que o ônibus não está mais lá. Falo do ônibus que fez sucesso no filme “Na Natureza Selvagem”, uma obra-prima inesperada dirigida por Sean Penn. O ano era 2007 e foi uma das melhores introduções ao pensamento utópico que tive na vida.

Então encontramos Chris McCandless (um notável Emile Hirsch) que está cansado da civilização. Tudo é uma mentira aos seus olhos: os pais, a escola, os amigos. O capitalismo. O mundo.

Ilustração de um homem sentado em cima de um ônibus antigo com o número 142 escrito em sua lateral. Há nuvens em volta da cena
Angelo Abu/Folhapress

Ele, que procura uma forma laica de santidade, decide partir, abandonar o carro algures. E avançar para o Alasca, onde encontrará a solidão mais radical.

O ônibus aparece nas sequências finais, quando Chris passa a habitá-lo, a dormir nele, a comer, a ler.

Mas o corpo, macilento e frágil, começa a não suportar os rigores do estado da natureza. Nem o corpo nem a alma, sobretudo quando Chris, lendo Tosltói, encontra a frase mais luminosa e mais terrível: “A felicidade só é real quando é partilhada”.

Confrontado com esse pensamento, o rosto de Chris é consumido por um esgar de dor —física e metafísica. Na sua busca de uma pureza imaginária, ele acreditou na sua autossuficiência narcísica e foi sempre cego à presença e à generosidade dos outros. Mas agora é tarde, não há retorno.

Depois do filme, o ônibus converteu-se em atração turística e vários imitadores de Chris procuraram alcançar esse nirvana no Alasca. Alguns morreram.

De duas, uma: ou não entenderam a mensagem do filme e o seu terrível final; ou entenderam, mas o apelo do martírio falou mais alto. Não há paixão mais funesta do que a paixão que sentimos pela nossa própria virtude.

Que o digam os novos zelotes do momento, que pretendem submeter a história, a arte, o pensamento e todas as opiniões heterodoxas ao julgamento inquisitorial do presente.

Tal como Chris McCandless, eles são imunes à ambiguidade, à complexidade ou à compaixão. Querem começar do zero, transformando o presente no Alasca.

Nesse sentido, o filósofo John Gray tem razão quando, recentemente, em artigo para o site UnHerd, desautorizou qualquer comparação entre a violência dos “wokes” e a violência clássica dos bolcheviques.

Para Lênin, a violência era só um meio para atingir um fim —a famosa sociedade sem classes da teologia marxista.

Para os “wokes”, a violência é um fim em si —um momento terapêutico, ou catártico, que tem como objetivo libertar o mundo do pecado.

Se existe uma comparação válida, acrescenta Gray, é entre os “wokes” e os milenaristas medievais, que aterrorizaram a Europa com o mesmo tipo de infalibilidade moral.

A grande diferença é que os milenaristas congregavam os pobres e ofendidos que habitavam a miséria rural ou o “bas-fond” das cidades da Baixa Idade Média.

Os milenaristas de hoje provêm da burguesia urbana, letrada e afluente. Exatamente como o personagem do filme, Chris McCandless, para quem o privilégio e o conforto eram as marcas do demônio.

2. Leio na imprensa que Minnesota removeu das suas escolas “O Sol É para Todos”, de Harper Lee, e “As Aventuras de Huckleberry Finn”, de Mark Twain. Pelas razões conhecidas: existem expressões racistas nessas obras de ficção —e quanto mais depressa elas forem expurgadas do espaço público, mais depressa o racismo propriamente dito acabará por desaparecer.

A lógica é totalmente orwelliana, porque essa é a mensagem de “1984”, um romance que, sintomaticamente, virou best-seller no mundo inteiro, Brasil incluso: a tirania sobre o mundo começa sempre pela guerra à linguagem. Controlando certas palavras e abolindo outras, será possível refundar a natureza humana.

Como afirma um dos personagens mais sinistros de “1984”, o inesquecível Syme, o assalto à linguagem tem como objetivo “restringir o campo do pensamento”. E acrescenta, deliciado: “Ano após ano, [haverá] cada vez menos palavras, e o alcance da consciência [será] cada vez mais limitado”.

Sem termos acesso à linguagem do passado, viveremos literalmente na inconsciência. Até acordarmos um dia e, como o personagem Winston, sentirmos apenas a memória difusa e ancestral de que houve um tempo de liberdade em que as coisas eram diferentes.

João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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