A quarentena que se converteu em oitentena e que poderá se prolongar, deve servir para alguma coisa.
Primeiro, não é hora de se lamentar, se não falta um espaço para morar e alimento para sobreviver. Lamente-se o número dos que viviam na informalidade e não têm condições de subsistência. Lamente-se a morte que levou dezenas de milhares e que privou suas famílias da despedida, do ritual do luto e deixou filhos sem pais, pais sem filhos, maridos sem mulheres e estas sem seus companheiros.
Privilegiado quem pode aproveitar a solidão para refletir sobre a vida. Fazer um exame de consciência é imprescindível. Avaliar o que tem sido uma existência atabalhoada, correndo atrás de insignificâncias, perdendo tempo com inutilidades, ajuntando coisas e desprezando afeições.
Impressionou-me a leitura do texto “Entre quatro paredes”, de João Pereira Coutinho (FSP, 13.4.20), recomendando a leitura de “Walden”, obra de Henry David Thoreau, o mesmo que propôs a desobediência civil a um governo injusto.
Thoreau passou dois anos e dois meses recluso numa cabana afastada de tudo. Concluiu que a maior parte dos homens vive de forma mesquinha, como formigas correndo de um lado para o outro, alimentando o nosso ciclo de desejos com novos desejos sempre impossíveis de saciar. A vida se perde no detalhe. O que lembra o “por delicadeza perdi minha vida”. A vergonha de dizer não, a opção pela covardia da dissimulação em lugar de uma franqueza que pode machucar o outro. Um outro que, por sua vez, não hesita em nos machucar.
Dispor do tempo mostra que nos perdemos em mil tarefas inglórias, sempre em busca das ridículas noções de grandeza e magnificência. O conselho de Thoreau ainda é válido para nós, dois séculos depois: “Simplifiquem, simplifiquem!”. Desapeguemo-nos. Despojemo-nos do que acumulamos e para nada serve. Até da volúpia do contato físico, na verdade algo que, ao faltar, não equivale à eliminação do amor. “O valor de um homem não está em sua pele, para precisarmos tocá-lo”. A afeição é intangível. Na verdade, a prova de estima reside hoje em não tocar as pessoas, para reduzir o risco de contaminá-las.
Para Thoreau, somos a nossa primeira companhia. Se não conseguimos conviver com ela, se não a suportamos, nunca seremos boa companhia para alguém. É urgente resgatar o sentido de nossa individualidade. “Todo homem é senhor de um reino do qual o império terreno do czar não passa de um Estado minúsculo”. Coutinho completa: “Se essa quarentena não servir para visitarmos o nosso reino abandonado, para abrir as janelas, para podar o jardim, servirá para que?”.
Se viermos a perder o medo da solidão, ela deixa de ser solidão. O silêncio já não é mais silêncio, pois escutaremos “tudo o que o vento traz”. É percorrer o que de bom já vivemos, como propunha Cecilia Meireles: os jardins da memória só a mim pertencem. Só eu tenho a chave.
Valhamo-nos do que a peste nos impõe e aceitemos o convite helênico do “conhece-te a ti mesmo!”. Para isso, sirvamo-nos daqueles que nos legaram lições de vida válidas para quem consegue ler de verdade, assimilando a alma que o escritor deixou como forma de compartilhar suas experiências. Os livros devem ser lidos com respeito. E não é a leitura dinâmica, automática, superficial. Ao “contrário, a leitura que alimenta os espíritos famintos existe para suspender as horas”.
Vale a pena ler Thoreau, mas também ler os clássicos. Citamos tantos livros que nunca lemos com vagar e saboreando cada linha. Dante, Cervantes, Pessoa, Machado, Montaigne, tantos os convites à nossa espera!
Impregnemo-nos da poética de Thoreau, que exortava “Dirige teu olhar para dentro de ti/E mil regiões encontrarás ali/ainda ignotas. Percorre tal via/ E mestre serás em tua cosmografia”.
É o que poderá nos ajudar a aguardar o fim do flagelo. “Só amanhece o dia para o qual estamos despertos”.
Obrigado Thoreau, obrigado João Pereira Coutinho, por nos auxiliarem nessa hora e nos dar esperança de que possamos repetir os profetas: “Onde estava, ó morte, teu aguilhão? Onde estava, o túmulo, tua vitória então?”.
_ José Renato Nalini é Reitor da UNIREGISTRAL, docente da Pós-graduação da UNINOVE e Presidente da ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS – 2019-2020.
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