segunda-feira, 29 de junho de 2020

Regime amordaçou as artes e a imprensa para nada atrapalhar o ufanismo do Brasil grande, Especial ditadura, FSP


SÃO PAULO

Ingredientes: 1 xícara de leite morno; 3 ovos; 4 colheres de manteiga; 2 xícaras de açúcar; 1 xícara de chocolate em pó; 2 xícaras de farinha de trigo; 1 colher de fermento químico em pó. Modo de fazer: bata bem os ingredientes e leve ao forno até dourar.

Se estivéssemos em uma ditadura, esta reportagem, sobre censura, não seria publicada. Um censor a teria vetado, e o jornal, em substituição a ela, poderia ter publicado a receita de bolo de chocolate.

Guloseimas e poesias também preencheriam este espaço se o texto fosse crítico ao presidente ou a um aliado, ou se trouxesse informações sobre a pandemia que o governo preferisse omitir.

A censura fazia parte da máquina de vigilância e repressão montada pelos militares. Era proibida manifestação que desagradasse o regime, tanto nos jornais quanto nas artes ou mesmo em salas de aula.

Em um levantamento do livro “1968 – O Ano que Não Terminou”, o jornalista Zuenir Ventura aponta que, entre 1968 e o final de 1978, quando estava em vigor o AI-5, que recrudesceu a repressão, foram censurados cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros, 100 revistas e mais de 500 letras de música.

Quem ousasse expressar ideias que soassem inconvenientes, além de ter texto ou obra vetados, corria o risco de responder a Inquéritos Policiais Militares, os IPMs, o que significava ser obrigado a prestar depoimentos nos quais estava embutida a ameaça de prisão, tortura e assassinato. Era o “terrorismo cultural”.

Na censura à imprensa, ficou famosa a publicação de “Os Lusíadas” em substituição a notícias proibidas em “O Estado de S. Paulo”. Entre agosto de 1973 e janeiro de 1975, versos de Camões apareceram 655 vezes em páginas vetadas pelos censores, instalados dentro da Redação.

Em 1974, a manchete “Os Lusíadas – Canto Primeiro” entrou no lugar da notícia de que o governador Laudo Natel havia proibido a divulgação de casos de meningite.

O surto tivera início na periferia de São Paulo. O governo federal optou por enfrentar a crise negando-a e exigiu o mesmo da imprensa.

Além da censura prévia, havia punições severas se algo furasse os bloqueios estipulados pelos censores.

Na imagem em preto e branco, policial com cachorro de polícia na calçada
A ditadura procurou esconder ao máximo epidemia de meningite - Arquivo Nacional

Um episódio conhecido é o da prisão de Lourenço Diaferia, da Folha, em 1977. Seu “crime” foi o de publicar uma coluna em que comparava o Duque de Caxias a um sargento que havia morrido ao pular em um poço de ariranhas, no zoológico de Brasília, para salvar um garoto.

“Eu digo, com todas as letras, prefiro esse sargento herói ao Duque de Caxias”, escreveu no artigo, que os militares consideraram provocativo. A Folha publicou em branco o espaço da coluna enquanto ele foi mantido preso.

Por conta disso, o jornal foi pressionado a afastar da direção de Redação Cláudio Abramo, tido como subversivo —ele se manteve ligado ao jornal, porém, como correspondente e colunista.

Com diversos tentáculos, a censura também ocorria por sufocamento econômico. Foi assim com o “Correio da Manhã”.

Em suas crônicas, o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony denunciou desmandos no primeiro dia do novo regime. O diário, que seguiu crítico apesar do agravamento da pressão, perdeu anúncios estatais e de empresas privadas, coagidas pelo governo, teve diretores e a proprietária, Niomar Moniz Sodré Bittencourt, presos e uma bomba detonada na Redação. Fechou em 1974.

Instituiu-se, então, um efeito colateral, a autocensura. O governo facilitava o trabalho ao enviar diariamente bilhetes com o que estava proibido e o modo como noticiar certos assuntos.

Na TV Globo, Dias Gomes, dramaturgo visado pelo regime, certa vez escreveu a Boni, diretor da emissora, reclamando que funcionários pareciam censores: “Quando passo pelos porteiros, já temo que um deles me chame e diga: ‘Vi no videoteipe aquele episódio. Acho que deve mudar aquela cena, aquilo não passa’”.

Foi ele o autor de “Roque Santeiro”, novela censurada em 1975, na véspera da estreia. A Globo reagiu com um editorial no “Jornal Nacional”, que pela primeira vez escancarava uma divergência entre a emissora e a ditadura.

As novelas eram controladas capítulo a capítulo, com o corte de palavras, frases, cenas inteiras e até mudança no rumo de personagens, com os censores sendo verdadeiros coautores. Chegavam a cronometrar beijos para dizer quantos segundos deveriam ser suprimidos e a acompanhar a edição, ordenando mudanças aos diretores.

A fim de aniquilar o que fosse considerado “de má qualidade”, censores davam um show de arbitrariedade.

O apresentador Chacrinha teve a ordem de prisão decretada por questionar uma censora que fora ao estúdio reclamar das roupas das dançarinas do programa. Nem pôde tirar a fantasia antes de ser levado à delegacia.

No jornalismo, a lista do que era proibido se somava à exigência da veiculação de conteúdo estratégico para a guerra ideológica, como depoimentos de jovens da luta armada que se declaravam “arrependidos” após serem torturados.

Ao menos quatro foram levados de um quartel, sob metralhadoras, para a Globo. Na TV Tupi, diante de autoridades, Massafumi Yoshinaga, da Vanguarda Popular Revolucionária, elogiou o governo e o “entusiasmo do povo diante da Copa do Mundo”. Solto, entrou em depressão e se enforcou.

Essa era a imagem do “pra frente, Brasil” que a ditadura tentava vender. Se os que a questionavam eram censurados, não faltavam benesses aos que a exaltavam.

O regime militar, em uma tentativa de se aproximar da produção cultural, lançou a Política Nacional de Cultura, que favorecia o patrocínio e criava instituições como o Concine (Conselho Nacional do Cinema) e a Funarte (Fundação Nacional de Artes).

Também fortalecia os já existentes Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e SNT (Serviço Nacional de Teatro), em um jogo de morde e assopra com o teatro e o cinema, tomados pela oposição.

Com vetos a peças na véspera da estreia e a filmes prontos para o lançamento, a ditadura tornava o investimento nessas produções uma aventura.

Foi assim com o espetáculo “Calabar”, de 1973, de Chico Buarque e Ruy Guerra. Na véspera da estreia, foi proibido.

Chico já havia sido censurado na sua primeira peça teatral, “Roda Viva”, em 1968. Além do veto, a montagem provocativa de Zé Celso, do Teatro Oficina, levou grupos de extrema direita a agredir o elenco e depredar os cenários.

O compositor também teve músicas censuradas e, ameaçado, teve de se exilar, assim como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Geraldo Vandré, Nara Leão e tantos outros artistas.

Compositores usavam metáforas para driblar a censura, criando clássicos do duplo sentido como “Apesar de Você” (“Apesar de você, amanhã há de ser outro dia...”), de Chico, “Cálice” (“Pai, afasta de mim esse cálice...”, trocadilho com “cale-se”), de Chico e Gil, e “Aquele Abraço”, em que Gil se despede rumo ao exílio.

Imagem de um documento cujo título é: censura federal
Aviso de Censura que era exibido no começo de cada programa da TV na época da ditadura militar - Reprodução


A expulsão do país foi também uma forma de calar professores e intelectuais, além do expurgo profissional, como ocorreu com Fernando Henrique Cardoso, que, após retornar do exílio, foi aposentado compulsoriamente da USP aos 37 anos.

A censura prévia aos livros só seria contemplada em decreto de 1970, que sofreu reação de autores e foi revogado.

A despeito disso, obras foram proibidas a qualquer tempo desde o golpe, com batidas policiais, apreensões e coerção a escritores e editores.

Ênio Silveira, dono da Civilização Brasileira, reduto de obras de intelectuais comunistas, foi preso sete vezes e teve a editora incendiada.

A censura é uma arma das ditaduras porque o dissenso, afinal, enfraquece as tiranias, como aponta o jornalista Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, autor de “Existe Democracia sem Verdade Factual?” (ed. Estação das Letras e Cores) e membro do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade. Ele ressalta que é a obediência, e não o debate, que dá estabilidade aos regimes autoritários.

“Para se manter no poder, os ditadores precisam controlar as ideias e as manifestações artísticas. Não podem conviver com a liberdade. Toda ditadura precisa instaurar a censura. Todo regime autoritário é puro medo de mudança, medo de transformação, medo de liberdade —medo cristalizado em controle paranoico da vida dos outros e censura obsessiva contra tudo que não seja obediência e louvação do chefe. Onde existe censura ou elogio da censura existe uma ditadura, ou, no mínimo, um governante querendo virar ditador.”

A censura sobreviveu em períodos democráticos no Brasil, tanto que os militares utilizaram como base um decreto de 1946, ano em que o país vivia uma democracia.

Mesmo após a Constituição de 88, a cultura não se livrou por completo do cerceamento. Mas a democracia proporciona os freios e contrapesos de instituições que, na ditadura, viviam sob a tutela do regime.

Na ditadura, além disso, o Estado normalmente se confunde com os valores e as vontades dos mandatários e decide o que pode e o que não pode ser visto de maneira unidirecional, conforme sublinha o historiador da USP Marcos Napolitano, autor de “1964 – História do Regime Militar Brasileiro” (ed. Contexto).

Já na democracia, as balizas à liberdade não estão nas mãos dos governantes.

“No Estado democrático, se uma pessoa, um grupo ou uma instituição se sente ofendido ou ameaçado por uma obra cultural ou publicação nos jornais, tem o direito de recorrer à Justiça. Esta, por sua vez, avalia se o conteúdo difamou, caluniou, manifestou preconceito, intolerância ou incitou ao crime e à violência. Haverá processo, testemunhas, pareceres técnicos, para subsidiar a decisão sobre eventual veto ou reparação, que ainda pode ser questionada em várias instâncias”, afirma Napolitano.

Atos censórios podem ser denunciados na democracia, enquanto na ditadura, notícias sobre censura também costumavam ser proibidas.

A sociedade ficava sem saber que uma informação ou obra lhe havia sido usurpada. Leitores ligavam para o “Jornal da Tarde” reclamando que as receitas não davam certo.

Por via das dúvidas, ressalte-se que, na receita do início deste texto, deve-se acrescentar o fermento somente após bater os outros ingredientes. Ficando bom ou não, o importante é que o bolo de chocolate não foi imposição da ditadura.

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