sábado, 27 de junho de 2020

Apocalipse causado por coronavírus pode tornar o trabalho mais criativo e afetuoso, Domenico De Masi, FSP (definitivo)

[RESUMO] Imposto a milhões de pessoas em todo o mundo em decorrência da pandemia, modelo de home office pode significar o início de uma reorganização do trabalho e, de forma mais ampla, de nosso modelo sociopolítico, garantindo mais autonomia e criatividade para trabalhadores, mais produtividade para as empresas e um desenvolvimento mais igualitário da coletividade.

CISNE NEGRO, CISNE BRANCO

Em grego clássico, a palavra apocalipse não significa apenas destruição, mas também revelação de coisas ocultas. O que este apocalipse me revelou? Antes de tudo, revelou-me uma nova diferença entre os economistas e os sociólogos.

Quando não sabem explicar o inexplicável, os economistas recorrem à literatura. Adam Smith pegou emprestado de Shakespeare a ideia de “mão invisível” para creditar o equilíbrio do mercado. Nassim Nicholas Taleb tomou o cisne negro de Juvenal para explicar os eventos imprevisíveis, e os economistas roubaram sua ideia. O colapso de 1929 foi um cisne negro, assim como o de 2008, e, sobretudo, a Covid-19, mesmo que Taleb o negue.

Para os sociólogos, ao contrário, a pandemia atual representa um cisne branco, previsível e previsto, que veio confirmar as hipóteses muitas vezes propostas pela Escola de Frankfurt e pelo Clube de Roma, por Noam Chomsky, Zygmunt Bauman, Serge Latouche e por muitos outros que atribuem à sociologia a tarefa de assediar, criticar os regulamentos vigentes e indicar, para além desses, outros melhores.

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Ainda em 2007, quando Taleb publicava “A Lógica do Cisne Negro”, Dominique Belpomme, um dos maiores especialistas em saúde ambiental do mundo, escrevia que há cinco cenários possíveis para o nosso desaparecimento: “o suicídio violento do planeta, por exemplo, uma guerra atômica; o aparecimento de doenças graves, como uma pandemia infecciosa ou uma esterilização, que levaria a um declínio demográfico irreversível; o esgotamento dos recursos naturais; a destruição da biodiversidade e, finalmente, as mudanças extremas em nosso meio ambiente, como o desaparecimento do ozônio estratosférico e o agravamento do efeito estufa”.

Neste ano bíblico de 2020, não felizes em experimentar uma pandemia infecciosa furiosa, continuamos indiferentes, visto que ainda destruímos a biodiversidade, esgotamos os recursos naturais, provocamos o desaparecimento do ozônio e agravamos o efeito estufa.

Diante do cataclismo histórico do coronavírus, tão assimétrico em relação à pequenez do morcego chinês que o desencadeou, o escritor italiano Sandro Veronesi insinuou que a Covid-19 não é um vírus, mas um anticorpo da natureza, que a natureza, destruída pelo homem, libertou contra o homem que a devasta. Em outras palavras, o verdadeiro vírus que a Terra pretende apagar de seu rosto seria justamente o homem, pois é ele quem reduz os rios a fossas, desmatando as florestas, queimando a Amazônia, poluindo o ar, aquecendo o planeta e ameaçando imprudentemente seu equilíbrio.

SEDE DE COCA-COLA

O comunismo sabia distribuir riqueza, porém não sabia produzi-la, enquanto o capitalismo sabe produzi-la, mas é incapaz de distribuí-la. No ano passado, o PIB do nosso planeta, para cuja produção contribuíram bilhões de trabalhadores, cresceu 3%. No entanto, 85% dessa imensa riqueza extra foi parar no bolso de apenas 1.200 pessoas.

Segundo a revista Forbes, as oito pessoas mais ricas do mundo têm a mesma riqueza de metade da humanidade, o que corresponde a 3,6 bilhões de pessoas.

Essa desproporção é provocada por um modelo socioeconômico neoliberal no qual a economia emprega a política para seus próprios interesses. O rabo das finanças move o cão da economia, as agências de classificação abrem caminhos para as finanças.

E esse moedor de carne tritura, reduzindo-os a resíduos humanos, todos aqueles que se tornam supérfluos para seu funcionamento ou que obstruem sua marcha insensata em direção a uma meta econômica que se desloca incansavelmente para frente, como uma miragem.

Segundo o sociólogo francês Serge Latouche, tal dinâmica é causada pela ação inteligentemente combinada de cinco fatores: a publicidade que nos leva aos consumos desnecessários, manipulando nossas necessidades; os bancos que nos levam ao endividamento para satisfazê-los; as dívidas que nos forçam a trabalhar mais para pagá-las; a vaidade que nos leva a ostentar coisas compradas como símbolo de status; a obsolescência dos bens, tornada intencionalmente mais rápida para acelerar a dinâmica do mercado.

É graças a essa paranoia induzida que são alcançados os resultados paradoxais: ter sede, agora, significa ter sede de Coca-Cola; depois de termos inventado um material indestrutível como o plástico, usamo-lo para objetos de uso único; uma pequena minoria da população mundial enriquece fazendo com que as classes menos favorecidas e as gerações futuras paguem o preço pela destruição do ecossistema.

Para escaparmos dessas garras, Ivan Illich, fundador do Centro Intercultural de Documentação em Cuernavaca, México, sugeriu que aprendêssemos com a sabedoria do caracol, o qual ele nos oferece como metáfora.

O caracol constrói sua concha adicionando pacientemente, uma após a outra, espirais cada vez mais largas. Alcançado um certo ponto, ele instintivamente percebe que, se desse uma única volta, a concha se tornaria tão pesada que superaria a força física necessária para carregá-la.

Então, o caracol inverte a marcha e começa a construir espirais cada vez mais estreitas, dando à sua concha a bela forma que é conhecida por nós. A pandemia produzida pelo coronavírus se projeta como uma imensa narrativa planetária dessa metáfora.

DESENVOLVIMENTO SEM TRABALHO

Abaixo e dentro da díade produção-consumo, há o trabalho que confere valor a ambos. Ao longo de todos os milênios da sociedade rural, prever tarefas cansativas e trabalhar para os outros eram consideradas condições desonrosas.

Segundo Aristóteles, “só é perfeito o cidadão livre das tarefas necessárias, as quais são feitas por escravos, artesãos e trabalhadores”. Cícero acrescenta: “A condição salarial é sempre sórdida e indigna de um homem livre”.

Locke, Smith, Marx e, em seguida, a sociedade industrial, que durou de meados do século 18 a meados do século 20, colocaram, pela primeira vez na história da humanidade, o trabalho livre no centro do sistema social, tornando-o motor da economia e a própria essência do homem.

Mas, em 1958, a filósofa alemã Hannah Arendt se questionava: “O que acontece em uma sociedade fundada no trabalho quando o trabalho vem a faltar?”.

Antes da pandemia, os empregos entravam em colapso de tempos em tempos, abruptamente, devido aos ciclos depressivos da economia, mas também diminuíam constantemente, porque o homem, desde sempre, tentava descarregar seu cansaço nas máquinas: rápidas, precisas, que não entram em greve e não precisam de pausas.

Durante os 200 anos da sociedade industrial, as máquinas mecânicas e eletromecânicas substituíram uma parte considerável do trabalho dos operários. A partir do período do pós-guerra, a sociedade pós-industrial começou a substituir trabalhadores por robôs e funcionários por computadores.

Por fim, a inteligência artificial está substituindo grande parte do trabalho que acolhe as atividades criativas. Em outras palavras, antes da pandemia, aprendíamos a produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho humano, ou seja, aprendíamos a resolver o problema econômico.

Essa era a situação do trabalho e da produção nos últimos meses de 2019. Na era pré-histórica, que remonta a quatro meses atrás, discutia-se esse fenômeno, que chamamos de "jobless growth" (crescimento sem emprego) e que muitos economistas insistiram em negar, afirmando, contra todas as evidências, que as novas tecnologias criariam mais trabalho do que destruiriam.

No entanto, o mais inteligente deles, John Maynard Keynes, com uma perspicácia humanística e sociológica, antes mesmo que econômica, já havia escrito, em 1930, que “o desemprego devido à descoberta de instrumentos poupadores de mão de obra avança com ritmo mais rápido que a nossa capacidade de encontrar novos empregos para a mesma mão de obra. Mas essa é apenas uma fase de desequilíbrio transitória. De fato, visto em perspectiva, isso significa que a humanidade está resolvendo seu problema econômico”.

À espera de que tudo possa ser concentrado nas máquinas, “o pouco trabalho que resta ainda é distribuído entre o maior número possível de pessoas. Turnos de três horas e semana de 15 horas de trabalho podem manter o problema sob controle por um bom período”. Em suma, trabalhar pouco, para que todos possam trabalhar.

Nesse ponto, “pela primeira vez desde sua criação, o homem se encontrará diante de seu maior e mais constante problema: como usar o tempo livre que a ciência e o juro composto terão retirado dele, para que possa viver bem, agradavelmente e com sabedoria”.

De 1930 até hoje, o progresso tecnológico abriu caminho para as máquinas! Como se sabe, de acordo com a Lei de Moore, o poder de um microprocessador dobra a cada 18 meses. Hoje. um chip é cerca de 70 bilhões de vezes mais potente de que quando foi inventado, e em dez anos será centenas de bilhões de vezes mais potente que hoje.

O século 21 será marcado pela engenharia genética com a qual conseguiremos vencer muitas doenças, pela inteligência artificial com a qual poderemos substituir muito trabalho intelectual, pelas nanotecnologias com as quais os objetos se relacionarão entre si e conosco, a partir de impressoras 3D com as quais poderemos produzir muitos objetos em casa.

No entanto, por mais intrusivas que sejam, as tecnologias jamais serão capazes de despojar o homem das atividades criativas, estéticas, éticas, colaborativas, críticas e de resolução de problemas.

"SMART WORKING"

Tomemos o caso da Itália: há 130 anos, havia apenas 40 milhões de italianos, e apenas em um ano trabalharam 70 bilhões de horas —principalmente em serviços físicos, realizados por trabalhadores que manipulavam matérias-primas usando fornos imensos e linhas de montagem.

Hoje 60 milhões de italianos trabalham 40 bilhões de horas e, no entanto, produzem infinitamente mais. Além disso, hoje o trabalho é principalmente intelectual, realizado por empregados, funcionários, empresários e profissionais que manipulam informações, usando um minúsculo laptop. Algo semelhante também aconteceu no Brasil.

Graças à internet, as informações podem ser transferidas de um extremo a outro do planeta em tempo real e a custos insignificantes. A internet completou 50 anos, a web, 30, o Instagram, apenas dez. Uma geração de “digitais” cresceu com eles, substituindo a geração de “analógicos”, e a “nuvem” informática transformou o mundo inteiro em um único agora: podemos teleaprender, telenegociar, teledivertir, teleamar.

E teletrabalhar. Tudo o que precisamos é de um smartphone para operar remotamente onde for mais cômodo para nós, conectados telematicamente com chefes, colegas, colaboradores, clientes e fornecedores.

A história do "smart working" representa um caso emblemático da relação entre organizações e inovações. Antes da pandemia, todo o mundo fazia teletrabalho, mas só informalmente. Era apenas necessário pôr a orelha à escuta, quando se estava no trem, no avião, na rua ou em um local público para ouvir pessoas que, em seus celulares, conversavam sobre trabalho, consultavam-se, davam ou recebiam ordens.

Talvez não soubessem, mas estavam fazendo smart working. No nível formal e contratual, no entanto, as gerências das empresas resistiam obstinadamente à introdução do trabalho ágil, e os sindicatos, coniventes, não lutaram para obtê-lo.

Entretanto, as vantagens teriam sido muitas e notáveis. Para os trabalhadores, a possibilidade de autorregular tempos, locais e ritmos ​​aumentaria com a autonomia; a separação entre trabalho e vida teria sido reduzida; as condições de trabalho e a gestão da vida familiar e social teriam melhorado; tempo, cansaço, despesa e riscos de deslocamento seriam economizados.

Para as empresas, a produtividade teria aumentado de 15% a 20% e, ao mesmo tempo, o absenteísmo, a rotatividade, o microconflito, as despesas com imóveis e serviços teriam diminuído.

Para a coletividade, o deslocamento, a poluição e os gastos com manutenção de estradas teriam sido reduzidos; as áreas superlotadas teriam sido descongestionadas; empregos teriam sido levados para regiões periféricas, isoladas ou sem perspectivas; o trabalho seria estendido para donas de casa e inválidos.

Na Itália, no Brasil, em todo o mundo, antes do início da pandemia, apenas pouquíssimos trabalhadores operavam remotamente. Depois, em uma semana, sob o chicote do coronavírus, o número de "smart workers" (trabalhadores inteligentes) ultrapassou 200 milhões. Já em 2 de fevereiro, o Daily Herald, de Chicago, publicou um longo artigo com o título: “O coronavírus compele ao mais vasto experimento de teletrabalho no mundo”.

Acima de 200 milhões de trabalhadores, há pelo menos 20 milhões de chefes que, devido a uma resistência obtusa às mudanças e de acordo com sua concepção arcaica de poder, dificultaram o smart working, roubando, por muitos anos, de seus colaboradores uma vida mais equilibrada, de suas cidades, uma convivência mais limpa, de suas empresas, uma maior produtividade.

Uma vez cessada a pandemia, esses mesmos 20 milhões de chefes irão conspirar, de todas as formas, para trazerem os funcionários de volta para a empresa, com o objetivo de restaurar completamente seu poder mórbido.

TRABALHO ONÍVORO

Durante os últimos dois séculos, tanto na Itália como no Brasil, trabalhamos cada vez menos, mas, graças à tecnologia e à globalização, produzimos cada vez mais.

Neste ano, devido à pandemia, a produção e o consumo pararam simultaneamente. Como se por magia, mesmo em regiões distantes do contágio, milhões de pessoas que antes viviam quase apenas para produzir e consumir foram subitamente forçadas pela angústia e pelos decretos de lei a parar.

Muitas não conseguiram parar. Sua existência se identificava de maneira muito consubstancial com o trabalho. Nem mesmo o medo da morte as impediu de abandonar fábricas ou escritórios —algumas, para não sucumbirem à concorrência; outras, por horror à inércia; outras ainda, por um sentido calvinista de dever. E, também, aquelas forçadas pelos empregadores e pela fome.

Nas regiões italianas mais ricas e afetadas pela pandemia, as vítimas não foram cremadas em tempo, mas a dois passos dos hospitais e dos cemitérios empresas produtoras de armas insistiam em não interromper a produção desses instrumentos de morte.

Milhares de empresas foram as últimas a fechar e, imediatamente depois, seus lobbies começaram a pressionar para reabrirem o mais rápido possível. Foi assim que começou o cabo de guerra: de um lado, virologistas e sindicatos optaram pela prudência em nome da saúde; do outro, os empreendedores tentavam reabrir as empresas em nome da economia. No final, os empresários venceram.

COMO CHUVA DE GRANIZO NA COLHEITA

A queda vertical e repentina da demanda e da oferta esfriou os mercados, bloqueando a marcha triunfante do PIB mundial, acostumado a crescer de 3 a 5% ao ano.

Na Itália, neste ano, a taxa de déficit em relação ao PIB chegará a 10%, em comparação aos 2,2% estimados antes do coronavírus, e a dívida chegará de 155% a 160% do PIB. No Brasil, não acredito que será melhor.

Muitas pequenas e médias empresas, que já estavam nos limites da manutenção antes da pandemia, agora correm risco de extinção. Milhões de trabalhadores, que até então viviam de redes informais e familiares, agora estão desprovidos de paraquedas.

O desemprego atribuível à longa onda de progresso tecnológico —incorporada, de 2008 em diante, à curta onda da crise econômica— explodiu, com a súbita chegada da Covid-19, na Itália, no Brasil e também nos Estados Unidos.

Segundo a Oxfam, haverá meio bilhão a mais de pessoas pobres no mundo e um retrocesso de 30 anos na luta contra a pobreza absoluta. Na Itália, em três meses, os pobres passaram de 5 milhões para 10 milhões.

Com a produção e o consumo entrando em colapso simultaneamente, em apenas dois meses todos ficamos mais pobres, como camponeses que perderam a colheita para a chuva de granizo, e por mais que possam blasfemar contra Deus ou contra o Diabo, ninguém jamais lhes devolverá a colheita.

Muitas vezes ouvimos a comparação da pandemia do novo coronavírus com uma guerra, mas a guerra destrói homens e coisas, enquanto a pandemia deixa as coisas ilesas e mais espaço para os sobreviventes.

Em relação há 75 anos, quando a Segunda Guerra Mundial terminou, nós, italianos, não tivemos que reconstruir as fábricas: bastou reabri-las. Embora, porém, a libertação do fascismo e da guerra tenha levado a um desejo entusiasta de reconstrução das casas, das fábricas e da economia por meio do sacrifício.

Hoje, todos —empresários, trabalhadores, desempregados, sindicatos— de repente se tornaram keynesianos e invocam subsídios, anistias, prazos, auxílios e amortecedores dos governos nacionais e europeu, que, entretanto, também se tornaram mais pobres.

A ÚLTIMA ESPIRAL

Com sua linguagem lúgubre, a Covid-19 nos alertou que, antes da pandemia, havíamos alcançado a última e maior espiral do caracol: se ousarmos construir uma ainda maior, insistindo nos mesmos erros, seremos esmagados sob nossa própria construção.

Portanto, aconselhou-nos a redesenhar nosso modelo sociopolítico e, antes de tudo, o trabalho que representa seu elemento fundamental e que deve ser libertado de todas as incrustações paradoxais acumuladas nos 200 anos de gloriosa, porém imperfeita, história industrial.

Isso implica uma revolução estrutural e cultural. A estrutural deve começar modificando a Constituição, que não pode mais alavancar o trabalho, a partir do momento que ele cobre apenas um décimo de nossas vidas. Portanto, a democracia não pode ser fundada apenas nesse décimo.

Em uma sociedade em que, para a maioria dos cidadãos, o trabalho está destinado a perder quantidade e centralidade, ao lado dele emergem outros pilares do sistema democrático, todos inscritos na esfera do não trabalho, que inclui formação, introspecção, amizade, amor, diversão, beleza e convívio.

Também inclui um modelo de família em que os idosos não são alojados nos hospícios, como acontece nas áreas mais ricas da Itália —e, no caso de uma pandemia, metade deles não deve ser imolada pelo egoísmo dos filhos, possuídos pelo demônio do trabalho.

Se hoje os pais trabalham dez horas por dia e, também por esse motivo, os filhos permanecem desempregados, é necessário também redistribuir igualmente, com o pouco trabalho que resta, riquezas, poderes, conhecimentos, oportunidades e proteções.

Se o trabalho não for redistribuído, mesmo recorrendo à escamoteação dos contratos de solidariedade, um número crescente de desempregados e de Neet (termo em inglês para jovens fora do mercado) será forçado a consumir sem produzir. A consequência disso será uma estagnação econômica e um aumento ininterrupto dos conflitos sociais.

A natureza intermitente do trabalho, inerente à sua natureza pós-industrial, torna necessário preencher as fases de vazio ocupacional com uma renda universal razoável, enquanto será necessário garantir, a qualquer pessoa que trabalhe, um salário mínimo constantemente atualizado com base no aumento da produtividade.

Essa revolução estrutural deve ser acompanhada por uma cultural que possa partir precisamente das recomendações que Keynes deu a seus netos, nossos contemporâneos: “Precisamos ter a coragem de atribuir à motivação ‘dinheiro’ o seu verdadeiro valor. O amor ao dinheiro como posse, e distinto do amor ao dinheiro como meio para desfrutar os prazeres da vida, será reconhecido por aquilo que é: uma paixão mórbida, um pouco repulsiva, uma daquelas tendências meio-criminais e meio-patológicas que geralmente são transmitidas com um calafrio ao especialista de doenças mentais”.

Depois, devemos condenar a ganância com a qual todas as agências de socialização —a família, a escola, a mídia— se esforçam para focar a educação dos jovens apenas no trabalho, e não voltada à vida inteira.

Até agora, o trabalho, valorizando principalmente a força física e a esfera racional das pessoas, criou um mundo competitivo, todo masculino, separado da esfera dos amigos e da família.

A partir de agora, será necessário recompor profissão e vida, valorizando com o "smart working" a desestruturação espaço-temporal do trabalho; encorajando a irrupção da emoção, da fantasia e da afetividade na esfera produtiva; garantindo uma igualdade de gênero concreta, um respeito seguro às diversidades, um crescimento cultural dos indivíduos e de toda a comunidade para cuja administração o município, a escola e as empresas contribuem.

Empreendedores e empresários, propensos a se trancar nas empresas, devem ser incentivados à exploração do contexto social, orientados a conjugar o trabalho com a vida, motivados a cultivar a ética e a estética.

A partir momento que a delegação do trabalho às máquinas e à inteligência artificial oferecer ao homem atividades cada vez mais criativas, na organização do trabalho será necessário concentrar-se na motivação muito mais que no controle, na autonomia e não na burocracia, no mérito e não em alianças, na liderança participativa e não autoritária, na emulação de solidariedade e não na competitividade sem sentido.

O coronavírus é uma terrível calamidade; inútil dizer que teria sido infinitamente melhor se jamais tivesse aparecido. Porém, visto que está causando danos, é melhor tirar proveito deles para mudar algo em direção ao significado e à organização do trabalho.

No entanto, os que conduziam as danças, quando entramos no túnel, são os mesmos que as conduzirão, quando sairmos dele. Isso torna improvável qualquer renascimento.

Em um muro de Madrid, cidade também violentada pela pandemia, uma mão guiada pelo otimismo da vontade escreveu: “No volveremos a la normalidad porque la normalidad era el problema”. Mas nada nos assegura que não voltaremos.


Tradução de Davi Pessoa.

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