quinta-feira, 18 de junho de 2020

O QUE A FOLHA PENSA Iconoclastia moderna

É possível lidar com as estátuas indesejadas recorrendo aos ritos democráticos

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A estátua de Borba Gato em Santo Amaro (zona sul de São Paulo), atualmente vigiada 24h por dia devido à possibilidade de ser derrubada por manifestantes antirracistas
A estátua de Borba Gato em Santo Amaro (zona sul de São Paulo), atualmente vigiada 24h por dia devido à possibilidade de ser derrubada por manifestantes antirracistas - Zanone Fraissat/Folhapress

O visitante que vai a um museu com bom acervo de estátuas da Antiguidade clássica, como o Louvre ou o Museu Britânico, dificilmente deixa de perceber o grande número de peças desfiguradas —a ausência do nariz pode ser o sinal mais notável, mas não o único.

Parte desse efeito grotesco se deve à passagem do tempo, mas a maioria das desfigurações se deu de forma proposital no passado. Cristãos, imbuídos da certeza de servir ao único Deus verdadeiro, promoveram campanha sistemática de destruição do passado clássico, pilhando templos, vandalizando estátuas e queimando livros.

Estima-se que apenas 10% da literatura clássica tenha sobrevivido. A devastação foi particularmente intensa entre autores latinos. Só 1% do que foi escrito por romanos não cristãos acabou preservado.

A maioria dos participantes dos ataques antipagãos julgava promover a mais justa das causas. Não obstante, o efeito mais duradouro de suas ações foi uma irreparável destruição de patrimônio arqueológico e cultural, sem mencionar as vítimas de torturas e assassinatos nesses movimentos.

Ainda que o alcance e a escala da iconoclastia cristã sejam incomensuravelmente maiores que os da atual onda de derrubada de estátuas, o alerta do passado continua útil —lembra que bons sentimentos não asseguram decisões sábias.

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Não resta dúvida de que o racismo constitui uma chaga em diversas nações, Brasil incluído, e que já passa da hora de sermos mais proativos na adoção de medidas que possam minorá-lo. Grandes manifestações são importantes para manter a população mobilizada, mas destruir patrimônio público é errado, além de ilegal.

Defendê-lo, aliás, não implica que se deva aceitar o statu quo. Se a população acredita que algumas das figuras celebradas em estátuas são indignas da homenagem, é perfeitamente viável alterar a situação pelos ritos democráticos.

As peças podem ser removidas de seus pedestais e enviadas a museus ou parques; podem ser ressignificadas, por meio de contextualização ou da construção de monumentos concorrentes.

As mudanças estarão sempre sujeitas, decerto, aos humores de época e aos contextos históricos. Parece, claro, hoje, que existe um déficit de homenagens nacionais a mulheres, a negros, a indígenas. Também isso pode ser enfrentado por meio do entendimento, sem prejuízo dos protestos legítimos.

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