terça-feira, 7 de agosto de 2018

Joel Pinheiro da Fonseca A descriminalização do aborto, Joel Pinheiro da Fonseca, FSP

A discussão do aborto, embora movimente paixões acaloradas, não é palco de grandes divergências sobre os fatos empíricos.
Tanto quem é contra como quem é a favor de sua proibição concordam que o feto, desde o estágio embrionário, é um organismo da espécie biológica humana. E ambos concordam que esse embrião não pensa, não quer e não sente. O cerne da discussão é se essa vida biológica deve ser considerada moralmente equivalente a uma vida humana em sentido pleno.
Essa discussão se dá no campo dos valores e das escolhas. Por isso mesmo, as posições são um tanto fluidas e até inconsistentes. No passado, a própria teologia da Igreja católica -- hoje a mais convicta defensora da criminalização do aborto desde a concepção -- considerava que o feto só recebia a alma humana num estágio posterior.
Mulheres que defendem a descriminalização do aborto fazem protesto na frente do STF, em Brasília
Mulheres que defendem a descriminalização do aborto fazem protesto na frente do STF, em Brasília - Pedro Ladeira/Folhapress
Para São Tomás de Aquino, por exemplo, embora o feto fosse um ser vivo desde o início, ele só se tornava um ser humano após 40 dias. Fazer um aborto antes disso era pecado, mas não era homicídio. Não foi nenhuma descoberta da embriologia que determinou a mudança na posição da Igreja, mas uma decisão. A decisão de enxergar, já no embrião, um ser humano tão humano quanto um bebê nascido.
Na prática, porém, é raro que alguém leve essa posição às suas consequências lógicas. Sabemos, por exemplo, que mais de um terço dos embriões morrem naturalmente por falhas no processo de nidação, que é quando ele se implanta na parede do útero.
Agora imagine: se uma epidemia ou algum problema congênito matasse um terço dos bebês já nascidos de todas as mulheres, veríamos isso como uma catástrofe e investiríamos pesado até encontrar uma cura. Agora me diga: quantas pessoas -- mesmo entre os mais árduos defensores da proibição do aborto -- estão preocupadas e dispostas a investir recursos para reduzir a mortandade natural de embriões em mulheres normais? Essa falta de preocupação nos indica que nem mesmo eles veem no feto em seus estágios iniciais algo equivalente a um bebê. Então por que mulheres que procuram um aborto são tratadas como assassinas?
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, quase 20% das mulheres brasileiras que chegam aos 40 anos realizou ao menos um aborto. Via de regra, é um momento traumático para qualquer mulher. Não raro marcado por desespero, solidão, vergonha, culpa e dor. Mantê-lo criminalizado é adicionar a isso a ameaça da prisão.
Descriminalizar o aborto não é defender sua prática, considerá-la correta, ou mesmo dizer que não é pecado. Trata-se de constatar que a forma como o Estado brasileiro reage ao aborto é cruel e ineficaz, dada sua alta incidência mesmo quando ilegal. Você pode ser contra o aborto - defendendo medidas eficazes para reduzir sua incidência, como acesso a contraceptivos e educação sexual - e, ainda assim, não querer jogar as mulheres que o praticam na prisão.
É bem provável que você que lê este artigo conheça mulheres que realizaram abortos: mães, irmãs, amigas. A pergunta que o STF busca responder agora é, em essência: essas mulheres deveriam ser presas? Devemos tratar 20% das mulheres vivas hoje como assassinas? Se você pensa que não, então você concorda comigo: independentemente do posicionamento moral, o aborto deve ser descriminalizado.
Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP.

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