Temos acompanhado o debate em torno das propostas anunciadas pelo governo federal a respeito das renovações antecipadas dos contratos de concessão das ferrovias de carga. Ninguém duvida que o Brasil necessita urgentemente de uma política pública que busque uma matriz de transportes mais equilibrada, com maior participação do modal ferroviário, e é muito importante que o tema seja amplamente discutido.
A renovação antecipada foi incluída no Programa de Investimento em Logística do Governo Federal em junho de 2015. A agenda, portanto, tem mais de três anos de discussões por parte dos agentes públicos e de toda a sociedade civil, incluindo juristas e economistas especializados no setor.
Já foram realizadas uma série de audiências públicas para debater a questão, e várias outras estão previstas para ocorrer nos próximos meses.Mas é preciso dar um passo atrás e recuperar o histórico do modal ferroviário para entender como chegamos até aqui. Símbolo de pujança e vigor econômico nos países desenvolvidos, as ferrovias começaram a entrar em decadência no Brasil a partir da década de 1950, com a adoção de uma política que priorizou as rodovias. Fruto do desinvestimento no setor, nos anos 1990, a Rede Ferroviária Federal acumulava, em valores presentes, R$ 2,2 bilhões em prejuízos e realizava um déficit operacional anual de R$ 300 milhões aos cofres públicos (segundo o BNDES).
Ao contrário do que o saudosismo pode dar a entender, o processo de desestatização da gestão da malha ferroviária não foi o responsável pela decadência do modal. As concessionárias herdaram ferrovias centenárias, com engenharia ultrapassada, com passivos operacionais e trabalhistas, ativos sucateados e traçados obsoletos que não atendiam o surgimento das novas regiões produtoras do país.Ao assumirem a malha ferroviária, essas concessionárias desoneraram o Estado.
Mais do que isso, arrecadaram quase R$ 40 bilhões para o governo em outorga, arrendamento e tributos. Por outro lado, nos últimos 21 anos, investiram R$ 92 bilhões no sistema ferroviário, o que permitiu um aumento de 173% na produção ferroviária e um crescimento de 113% na movimentação de carga.O transporte de contêineres cresceu 128 vezes e, em paralelo, as ferrovias reduziram em 86% os índices de acidentes. Se todos esses dados não permitiram um salto maior na participação do modal em nossa desequilibrada matriz de transportes, é inegável, contudo, que o setor avançou bastante se comparado ao período anterior.
A renovação dos contratos é fundamental para o destrave de mais investimentos para o setor e não é açodada
Vale também ressaltar os esforços para a viabilização do direito de passagem entre as malhas, que vencem, inclusive, o desafio técnico do compartilhamento de carga em ferrovias com bitolas distintas. Excluindo-se o minério de ferro, das 122,4 milhões de toneladas transportadas em 2017, 70,5 milhões utilizaram o direito de passagem. Ou seja: praticamente 60% de toda a carga transportada por trilhos no país atravessam malhas de terceiros.
Em 2006, esse percentual era de apenas 36,5%.É o direito de passagem pela Estrada de Ferro Carajás (EFC), operada pela Vale, e pela Transnordestina que viabiliza, atualmente, o único acesso portuário da Ferrovia Norte-Sul (ao Porto do Itaqui, no Maranhão). A duplicação da EFC, neste ponto, mostrou-se fundamental para a viabilização da concessão do tramo central da Ferrovia Norte-Sul, que deverá ocorrer ainda este ano, e para a implantação do Terminal de Grãos do Maranhão.
Da mesma forma, só que na outra ponta da Norte-Sul, os investimentos realizados pela Rumo Logística, pela MRS e pela VLI, por meio das renovações antecipadas, garantirão amplo acesso daquela ferrovia também ao Porto de Santos, além de viabilizar a expansão de empreendimentos estratégicos para o escoamento de produtos agrícolas, como o Tiplam e os terminais de grãos da Ponta da Praia.
No caso da Malha Paulista, único que já passou por audiência pública, o projeto prevê mais do que duplicar a capacidade da ferrovia que dá acesso ao maior porto do país. Isso em apenas seis anos. Não é pouca coisa.
As concessionárias estão dispostas a investir fortemente no sistema ferroviário, R$ 25 bilhões em cinco anos – e estão preparadas para isso. Além de permitir investimentos na malha atual, a renovação antecipada viabilizará investimentos em regiões carentes de infraestrutura.Os chamados investimentos cruzados poderão tirar do papel projetos como a Ferrovia de Integração Centro-Oeste (Fico) e o Ferroanel de São Paulo. Ambos são projetos antigos e, ao mesmo tempo, urgentes para o país, sendo que o primeiro já conta, inclusive, com estudos de viabilidade e licenciamento ambiental.
A Fico é uma demanda antiga do Centro-Oeste, que vê na sua construção uma alternativa de ligação do leste do Mato Grosso – nova e mais promissora fronteira agrícola do país – com o tramo central da Ferrovia Norte-Sul, possibilitando o escoamento da safra pelos portos do Itaqui e de Santos.
O setor investiu e se modernizou, a indústria ferroviária nacional foi reerguida, o Brasil tem hoje domínio técnico para avançar mais, ampliar sua malha e aproximar as operadoras das famosas ferrovias “classe 1” do mundo.
A renovação dos contratos é urgente e fundamental para o destrave de mais investimentos para o setor, mas não se pode dizer que é açodada. Afinal, trata-se de debate que já ocorre há pelo menos três anos.
Por quantos anos ainda continuaremos a enxergar os trilhos pelo retrovisor com o olhar saudosista da ferrovia dos tempos de Dom Pedro II?
Fernando Simões Paes é advogado e diretor executivo da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários.
Fonte: Valor Econômico
Data: 13/08/2018
Data: 13/08/2018
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