Ainda não foi desta vez que a legalização do aborto passou na Argentina, mas creio que é uma questão de tempo até que isso aconteça. Raciocínio semelhante cabe para o Brasil e para outros países da América Latina. A pergunta cabível não é se a interrupção voluntária da gravidez será admitida pela lei, mas quando.
Não digo isso porque tenha adquirido o dom de prever o futuro, mas porque a questão da descriminalização do aborto se inscreve num movimento de afirmação e ampliação do conceito de indivíduo que, no Ocidente, está em curso pelo menos desde o século 17. A analogia que cabe é com um transatlântico se movendo. Não é simples pará-lo.
O reconhecimento de direitos individuais, ideia que pareceria exótica aos antigos, não apenas fincou raízes nessa parte do mundo como vem sendo estendido para abarcar cada vez mais esferas. É possível utilizar essa chave interpretativa para entender movimentos tão diversos como a abolição da escravidão, os embates pela liberdade de expressão e a consolidação da livre iniciativa na economia.
No passado recente, vimos o divórcio, que pode ser entendido como a autonomia do casal para revogar a regulamentação divina do matrimônio, triunfar em todo o Ocidente. A América Latina demorou mais para fazê-lo, mas não escapou à tendência.
Não há motivo para achar que a legalização do aborto, que já é a regra na Europa (incluindo a catolicíssima Irlanda) e na América do Norte, não faça parte desse processo, que agora vai abraçando a bandeira da descriminalização das drogas. O item seguinte da pauta, creio, será o direito à eutanásia, cuja discussão já ocorre nos países desenvolvidos.
De minha parte, apoio tudo isso. Não penso que caiba ao Estado definir o que o indivíduo pode pôr e tirar de seu próprio corpo. Existem aspectos da vida de uma pessoa que são tão íntimos que o poder público simplesmente não tem legitimidade para regular.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".
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