Dominar o português é saber usar códigos distintos em situações variadas
Leandro Karnal, O Estado de S. Paulo
26 Agosto 2018 | 02h00
Escrevi uma coluna no Estadão há quase dois anos com o tema Língua Portuguesa. Novos ventos fizeram girar as pás do moinho do uso e achei bom retornar à última flor do Lácio.
Claudico na norma culta mais vezes do que seria lícito em alguém que se dedica à fala e à escrita de forma profissional. Mesmo assim, desde a infância, sou seduzido pelas ninfas do Tejo que Camões invocou. Nos bancos escolares, mal a professora ensinava que plúmbeo era o adjetivo de chumbo e sinonímia de cinzento, eu já incorporava o termo: “Que tom plúmbeo no céu!”. O mesmo ocorreu, recordo-me vivamente, com o marfim (ebúrneo), a prata (argentina) e o bronze (êneo). Não se preocupe tanto, querida leitora e estimado leitor, depois fiz anos de terapia e consegui dedicar mais energia a outras áreas e ficar ligeiramente menos estranho do que eu era.
O aumento do léxico não chegava a ser um amor à língua em si, porém uma curiosidade sem foco e um exibicionismo infantilizado. Eram prazeres esnobes de novos-ricos lusófonos, exibindo fina pátina no desejo de pretender algo além do cenário teatral de poucas palavras fora do comum. Descobri que os nascidos em São Luís eram ludovicenses, os de Salvador da Bahia, soteropolitanos, e, crème de la crème, os naturais de Jerusalém deveriam ser chamados de hierosolimitanos e pronto! Passava a engastar os novos gentílicos até no cachorro-quente da cantina.
Em nosso país, o saber bacharelesco sempre foi revestido de um tom barroco das palavras. A fala grandiloquente, as expressões raras, a ênfase na exceção ou a fixação em regências lusitanas em detrimento do uso brasileiro eram valorizadas. Vocabulário exuberante e o domínio do caso minúsculo caracterizavam o bem-falar. O arquétipo ficcional era o professor Astromar de Saramandaia. Falar difícil, mais do que falar bem, era qualificativo de boa origem e confiabilidade. O indivíduo de estirpe pronunciava separando bem (como mandava mestre Napoleão Mendes de Almeida), AB-rupto, deixando claro que sabia tudo sobre prefixos, sufixos, semântica e radicais. Ouvir alguém dizendo ABRUP-to? Era o horror, barbarismo, analfabetismo e incapacidade intelectual. Historicamente, o povo brasileiro foi saqueado por bacharéis engastando mesóclises no despacho fraudulento. Gramática e ética não eram gêmeas, porém tal tema foge do propósito de hoje.
Exemplo extremo da infeliz associação de inteligência à riqueza formal de termos, a poesia de um obscuro maranhense avulta: “Tu és o quelso do pental ganírio Saltando as rimpas do fermim calério Carpindo as taipas do furor salírio Nos rúbios calos do pijom sidério”. Não entendeu nada? O objetivo era exatamente, esse. Destituído de beleza literária, o texto é um aranzel pedregoso, desejando impressionar a chamada “cidade das Letras”, o círculo erudito que Angel Rama identifica como legitimador do poder.
Reparei que muitos concursos não pedem o domínio desejável da interpretação de texto e compreensão básica das estruturas da língua, porém a exceção, o preciosismo, o detalhe pouco usado. O pretérito mais-que-perfeito do indicativo parece ser mais cobrado do que o banal pretérito perfeito. Há muitas “pegadinhas” gramaticais nas provas. Abunda o vós. Saber a língua parece ser, para horror de teóricos como Marcos Bagno, o registro fóssil de uma norma que D. Dinis, o rei-agricultor, acharia correta nos albores do idioma.
Preciosismo nos dominou como indicador social e distintivo de classe. O rococó vocabular foi metralhado desde o modernismo. A praça foi dominando sobre as nuvens, a ágora venceu a acrópole.
Chegamos ao polo oposto. A fala empobrecida virou virtude no século 21. Um único termo como “só” ou “né” passou a abarcar todo o universo de expressões, um verdadeiro Aleph borgiano. O excesso de arcaísmos foi vencido pelo domínio do neologismo, da gíria e da onomatopeia. Em comunicação virtual, imagens e rostos conseguiram uma vitória quantitativa. As pinturas das cavernas chegaram à vanguarda da comunicação.
Houve uma época em que associávamos bem escrever ao tom gongórico. Emergiu um novo valor: só poderíamos usar a livre expressão e a sala de aula teria por missão confirmar o uso da língua da rua e do bar. A acrópole passou a ser vista como puro elitismo a ser superado.
Entendo que não se deva ignorar o uso contemporâneo da língua. Nunca deveríamos transmitir que a gramática seja uma camisa de força necessária e imutável. A função educativa não é apenas reforçar o ponto no qual se encontra o saber de um aluno, mas, a partir do que ele conhece, ampliar, aprofundar, estimular a consciência das diferentes formas e normas da língua. Dominar o português é saber usar códigos distintos em situações variadas para atingir seu objetivo de comunicação. As nuvens e o solo fazem parte da paisagem comunicativa.
A alfabetização (processo que começa na infância e prossegue, inconcluso, até o dia da morte) é a área mais importante de todo projeto escolar. Ler, escrever, interpretar e comunicar antecede todos os outros saberes. Meu sonho é que todos consigamos evitar duas armadilhas: o estudo da língua não pode ser um túmulo no qual devamos sepultar vivos os usuários ou, de forma antípoda, estimular apenas que cada um ande a esmo e nu pelo jardim da lusofonia. O primeiro defeito ignora o indivíduo real, o segundo ignora a comunidade de falantes.
Repito a ideia que lancei há dois anos: minha língua não é túmulo nem subjetividade absoluta. A comunicação é fluida, porém não é só minha nem pertence aos gramáticos. Língua é patrimônio comum no qual posso expressar minha subjetividade. Língua é viva, não nasceu comigo e não deveria morrer na minha boca. Língua é ponte e não torre isolada. Quero minha língua roçando na de Camões, como desejava um baiano ilustre. Bom domingo para todos nós.
Nenhum comentário:
Postar um comentário