sábado, 25 de agosto de 2018

Medidas podem gerar ganhos de quase R$ 22 bi por ano para o SUS, FSP



Enfermeira prepara sessão de quimioterapia para paciente com câncer no Hospital Heliópolis em São Paulo. Foto: Lalo de Almeida/ Folhapress



Cláudia Collucci e Natália Cancian
SÃO PAULO E BRASÍLIA
Atacar as áreas de ineficiência no SUS (Sistema Único de Saúde) é o caminho para o país evitar desperdícios na ordem de R$ 22 bilhões por ano e chegar a uma situação mais equilibrada nas contas do setor.
A análise vem de um novo relatório do Banco Mundial que faz projeções do impacto financeiro em 12 anos se o país adotar medidas para tornar o SUS mais eficiente.
Na atenção primária (unidades básicas de saúde), são estimados desperdícios na ordem de R$ 9,3 bilhões, se somados os três níveis de governo. Na média e alta complexidade (ambulatórios e hospitais), em R$ 12,7 bilhões.
Segundo o documento, a continuar as tendências atuais de crescimento nominal dos gastos em saúde pública, o montante atingirá R$ 700 bilhões até 2030 -sem considerar o envelhecimento populacional, o aumento da carga de doenças crônicas e a incorporação de tecnologias.
Com mais eficiência, os gastos poderiam ficar em R$ 585 bilhões, ou seja, um ganho de de R$ 115 bilhões. "Isso poderia mitigar esses impactos e proporcionar espaço fiscal necessário para a consolidação do SUS, viabilizando investimentos em áreas-chave", afirma Edson Araújo, economista sênior do Banco Mundial.
Entre as medidas propostas, estão a expansão de equipes da ESF (Estratégia Saúde da Família) que atendem nas unidades de saúde e a criação de redes de saúde para prover os municípios pequenos na média e alta complexidade.
Atualmente, especialistas avaliam que são transferidas muitas responsabilidades para os municípios, o que acarreta um descompasso entre o que se espera que eles executem e a capacidade real de entregar os serviços.
Quase 70% dos municípios têm até 20 mil habitantes. Quanto menor, mais ineficiente se mostra para prover toda a gama de serviços de saúde que é responsável, segundo dados do Banco Mundial. Na média complexidade, municípios com menos de 5.000 habitantes têm desempenho quatro vezes pior do que aqueles com mais de 100 mil.
Uma das razões é o grande número de hospitais pequenos. Cerca de 55% deles têm menos de 50 leitos e metade da eficiência de instituições maiores, com mais 300 leitos.
"A municipalização não deu certo em termos de escala. Poucos lugares no mundo têm tantos hospitais pequenos. No Brasil, há um paradoxo: falta leito por habitante e há muitos hospitais pequenos", diz Araújo.
As taxas de ocupação de leitos no país também são muito baixas, em média 45% para todos os hospitais do SUS e apenas 37% para os leitos de cuidados agudos (muito abaixo da taxa de ocupação desejável, entre 75% e 85%).
"Além da baixa eficácia, hospitais pequenos podem trazer riscos. Mas não precisa fechar tudo. Podem ser reaproveitados para outras finalidades, como centro-dia [locais de convivência para idosos] e alojamentos para pacientes convalescentes", diz Ana Maria Malik, coordenadora do GVSaúde, programa de gestão em saúde da Fundação Getulio Vargas.
Apesar de considerar que, do ponto de vista de custos, hospitais com menos de 50 leitos não têm viabilidade econômica, Gastão Wagner, da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), concorda que o caminho não é fechar essas unidades, mas sim mudar a finalidade delas.
"Podem ser transformados em unidade mista, com uma ou duas equipes de saúde da família, sala de parto e estrutura ambulatorial. É uma forma de aumentar a eficiência e atender a população, que não fica desguarnecida", diz.
Na avaliação de especialistas, como Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, é preciso recuperar o tempo perdido com a municipalização e estruturar as regiões sanitárias, com regulação de acesso.
Isso se traduz pela criação de redes integradas de saúde, ou seja, grupos de municípios menores que se unem e dividem um mesmo sistema com provedores de serviços de saúde, como laboratórios, ambulatórios e hospitais.
O desafio, porém, é a coordenação desses cuidados. Hoje a fragmentação da rede do SUS resulta em duplicação de serviços, perda de economia de escala e custos operacionais mais elevados.
"Atualmente existem algumas iniciativas, mas não trabalham em conjunto com toda a cadeia de assistência, não têm clareza do funcionamento, da logística, da governança. Não funcionará se não houver pessoas dispostas a trabalhar em rede, em abrir mão de preferências pessoais", diz Ana Maria, da FGV.
Segundo Gastão Wagner, da Abrasco, no Brasil já existe uma divisão nas chamadas "regiões de saúde", mas falta gestão dessas estruturas.
"É preciso criar um fundo com contribuição de cada estado para hospitais daquela região que vão ser integrados em rede. Não seria só na área hospitalar, mas também na vigilância e enfrentamento de epidemias."
FALTAM MÉDICOS NOS MUNICÍPIOS COM ATÉ 20 MIL HABITANTES
O SUS enfrenta também desafios relacionados à disponibilidade, distribuição e desempenho de seus profissionais de saúde, de acordo com o relatório do Banco Mundial.
Hoje, essa distribuição é marcada por desigualdades, como muitos médicos trabalhando em áreas urbanas no setor privado ou atendimento especializado. Nos municípios brasileiros com até 20 mil habitantes (70% das cidades do país), há menos de 0,40 médico por mil habitantes.
Nas 42 cidades com mais de 500 mil habitantes, a taxa é bem maior, de 4,33 profissionais por mil moradores.
Uma saída defendida pelo Banco Mundial e pela Opas (Organização Panamericana de Saúde) é aumentar a atuação clínica da enfermagem, como ocorre países como Reino Unido e Canadá, com sistemas universais de saúde.
Mas há resistência dos conselhos médicos. Em 2017, o CFM (Conselho Federal de Medicina) ingressou com ação na Justiça tentando proibir que enfermeiros do SUS façam consultas e prescrição sob alegação de que invadiriam as atribuições dos médicos, mas, no final, o processo foi arquivado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região.
"Nas equipes de saúde da família, há um bom relacionamento entre médicos e enfermeiros. O problema está nos conselhos e nos sindicatos médicos", diz Manoel Neri, presidente do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem).
Outro desafio é formação profissional. Nem sempre os enfermeiros saem das faculdades preparados para assumir essas responsabilidades.
Para Donizetti Giamberardino, coordenador da comissão de defesa do SUS do CFM, o sistema deve ser multiprofissional, mas sem substituição do médico por outro profissional da saúde.
"Defendemos os princípios de universalidade e equidade do SUS, a mesma medicina de qualidade para todos."
Para ele, não é possível importar soluções de países com realidades econômicas diferentes da brasileira e muito menos tomar decisões visando apenas a gestão financeira em detrimento da qualidade.
Outra iniciativa que geraria mais eficiência à atenção primária é a expansão do programa saúde da família, cuja cobertura está estagnada em 65% da população. A meta seria atingir 100%.
Segundo Mauro Junqueira, presidente do Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde), o custo mensal de cada equipe é de R$ 35 a 40 mil, mas o governo federal só repassa aos municípios R$ 10 mil. "Existem municípios que até poderiam expandir [as equipes de saúde da família], mas, com isso, ferem a Lei de Responsabilidade Fiscal", afirma.
Muitas equipes estão sobrecarregadas. Cada uma deveria cuidar de grupos de até 2.000 moradores e hoje atende até o dobro disso. Também falta agregar tecnologia para tornar a atenção primária mais resolutiva, segundo o médico de família Roberto Umpierri, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
"Tem equipe que não consegue pedir um raio-x de tórax ou um eletrocardiograma de esforço, o que obriga o paciente a procurar um especialista e aguardar meses na fila", afirma Umpierri.
Mais resolutiva, a atenção primária poderia desafogar tanto os ambulatórios de especialidades quanto as emergências dos hospitais, que vivem lotadas de pacientes de baixa complexidade.
Os especialistas também são unânimes em apontar a integração de dados em saúde como outra peça fundamental para melhorar a eficiência do setor.
"O ideal seria que cada pessoa ao nascer tivesse um cadastro único de saúde que pudesse ser acessado por ela e pelos profissionais de saúde que vão atendê-la ao longo da vida", diz o economista Paulo Furquim, do Insper, que realiza estudos na área da saúde.
Pacientes aguardam para consulta médica na UBS São Vicente de Paula no Ipiranga em São Paulo. Foto: Lalo de Almeida/ Folhapress
Natália Cancian e Cláudia Collucci
BRASÍLIA E SÃO PAULO
Responsável pelo atendimento à saúde de 7 em cada 10 brasileiros, o SUS (Sistema Único de Saúde) vive um dilema entre encontrar alternativas para superar o subfinanciamento, um dos seus principais entraves, e aumentar a eficiência no uso dos recursos disponíveis.
A Organização Mundial de Saúde aponta que, em 2015, ano dos dados mais recentes, o país gastou em saúde o equivalente a 3,8% do PIB (Produto Interno Bruto) ou US$ 333 (cerca de R$ 1.288) por pessoa.
Para comparação, em países como Argentina e França, esse valor foi de US$ 713 e US$ 3.178 no mesmo ano, respectivamente.
"Se pegar o quanto aplicamos em valores per capita somando União, estados e municípios, é pouco mais do que a Namíbia", diz Élida Graziane, procuradora do Ministério Público de Contas de São Paulo.
Esse descompasso também aparece na comparação dos gastos em saúde na rede pública em relação ao setor privado. Atualmente, 54% do total desses gastos ocorrem na rede privada, que atende cerca de 50 milhões de brasileiros. O restante, ou 46%, está na rede pública, que atende mais de 150 milhões.
Se as contas já estavam difíceis, a entrada em vigor de novas regras para cálculo dos recursos federais destinados à saúde têm aumentado a preocupação do setor.
Desde o início do ano, a União tem o orçamento calculado com base nas regras da emenda constitucional 95. A medida, conhecida como "teto de gastos", prevê que o valor a ser investido pela União em saúde seja o equivalente aos gastos do ano anterior, ajustados pela inflação.
Para especialistas, porém, a mudança acaba por congelar os recursos à saúde -a estimativa é R$ 400 bilhões sejam perdidos até 2038. Um impacto que pode ser sentido já no próximo ano.
"Nossa preocupação é que a nova regra diminua o orçamento. Se o governo não conseguir liquidar o que chama de "restos a pagar", não entra como gasto efetivado. E se restos a pagar não é liquidado, é cancelado", diz Eli Iola Gurgel, economista especialista em saúde e professora da Faculdade de Medicina da UFMG.
Por meio de modelos matemáticos e estatísticos, um estudo publicado em maio na revista internacional PlosMedicine projetou 20 mil mortes a mais de crianças até 2030 caso as medidas de austeridade fiscal sejam mantidas.
O aumento estaria associado ao corte de verbas em programas sociais, como o Bolsa Família, que transfere renda diretamente às famílias de pobreza extrema, e o ESF (Estratégia de Saúde da Família).
Cortes nesses programas têm sido apontados como uma das razões para a alta da taxa de mortalidade infantil em 2016, após 26 anos de queda. O impacto maior seria nas chamadas mortes evitáveis, causadas por diarreias e pneumonias, que são influenciadas pela perda de renda das famílias, estagnação de programas sociais e cortes na saúde pública.
Em meio a esse impasse, a discussão sobre o financiamento da saúde deve agora chegar à Justiça.
A previsão é que o STF (Supremo Tribunal Federal) analise ainda neste semestre uma ação da Procuradoria-Geral da República que questiona as regras da chamada emenda constitucional 86, conhecida como "orçamento impositivo".
O modelo, que determinava que fossem aplicados percentuais de 13,7% a 15% da receita corrente líquida na saúde, foi usado para definir o orçamento de 2016. Para a Procuradoria, no entanto, a medida leva à redução de recursos ao estabelecer percentuais menores do que definido em regras anteriores e por retirar recursos da exploração de petróleo como "fonte adicional" da saúde.
Embora a emenda já tenha sido substituída pelo chamado teto de gastos, especialistas dizem que uma decisão a favor da suspensão pode recuperar recursos para a saúde e abrir precedente na análise de outras ações sobre o tema.
"Se o Supremo for no sentido de que não cabe retrocesso, a tendência é ter uma linha interpretativa coerente", diz Graziane.
Já há ao menos seis ações à espera de análise no STF que questionam impactos da emenda do teto de gastos. Uma delas, proposta pelo PDT, pede que a Corte exclua desse limite os gastos com educação e saúde.
O pedido tem sido reforçado por secretários de saúde do país, mas não encontra eco no governo federal. Em congresso com secretários de saúde no fim de julho, o ministro Gilberto Occhi defendeu que a medida não fosse suspensa, mas "aprimorada".
"Todos querem revogar [a emenda do teto], mas acho que precisamos melhorar a emenda. Ao melhorarmos a arrecadação no país, poderemos aumentar o financiamento do SUS. Defendo o avanço e a melhoria da regra que hoje está posta", disse.
Questionado sobre que tipo de mudança poderia ser feita, o Ministério da Saúde não respondeu. Em nota, diz que a emenda 95 "protege a saúde de ter seu piso de gastos reduzido mesmo em momentos de contração da economia e de queda de receita. Não há para a saúde um teto de gastos e sim um piso", diz.
Já para Mauro Junqueira, do Conasems (Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde), os municípios têm tido dificuldade em arcar com o aumento de gastos. De 2002 a 2016, a participação da União nos gastos com saúde caiu de 60,6% para de 43,1%. Já a dos municípios passou de 17,3% para 27,3%.
"Precisamos ter mais fôlego para dar conta", afirma ele, que defende mudanças no pacto federativo, com melhor distribuição das responsabilidades de União, estados e municípios, além de revisão nas regras de isenção fiscal concedida a alguns setores.
Se faltam recursos, também falta melhor gestão. Um balanço divulgado pelo CFM (Conselho Federal de Medicina) e pela ONG Contas Abertas em março deste ano aponta que cerca de R$ 174 bilhões deixaram de ser aplicados pelo Ministério da Saúde entre 2003 e 2017.
O valor representa 11% do total autorizado no período, que foi equivalente a R$ 1,6 trilhão. Quase metade dos recursos não usados deveriam ter sido destinados a obras e compra de equipamentos médicos para atender ao SUS.
"Tem que ter aumento do financiamento acompanhado de eficiência. Não adianta gastar mais sem ter métricas de qualidade", afirma o economista Paulo Furquim de Azevedo, professor do Insper.
Além do subfinanciamento, o modelo de transferência de recursos federais à saúde também tem sido alvo de debates.
Em dezembro, uma portaria do ministério passou a flexibilizar as regras de repasse de recursos da União a estados e municípios e permite que esses possam decidir como aplicar essas verbas.
Até então, esses recursos eram "carimbados" e enviados para uso específico em determinadas áreas, sem que pudessem passar para outras. Um recurso da atenção básica, voltado para unidades de saúde, não poderia ser destinado a hospitais.
Com a mudança, cabe ao gestor definir onde a verba será aplicada, desde que preste contas disso. Os recursos passam a ser divididos em apenas duas categorias: custeio e investimento.
A medida, que passou a ser aplicada neste ano, atende a uma demanda dos municípios, para os quais o modelo anterior deixava recursos "engessados" nas contas e impedia a aplicação em programas de maior necessidade. Especialistas, no entanto, alegam que a medida gera preocupação -sobretudo em relação ao controle dos gastos.

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