terça-feira, 21 de agosto de 2018

Amor com amor se paga, FSP

Ilustração
Angelo Abu/Folhapress
Recusar um aperto de mão pode ser uma manifestação de grosseria, excetuando casos de ofensa grave ou falta de higiene gritante. Eu próprio, confesso, não sou adepto do gesto quando o meu interlocutor é masculino: uma vida a usar banheiros públicos só confirmou as minhas suspeitas de que os homens mantêm relação problemática com o sabão.
Mas, pergunto, será suficiente para recusar a cidadania a alguém? Na Suíça, é. Ou, para sermos rigorosos, na cidade de Lausanne.
Eis a história: um casal de muçulmanos iniciou o processo para obter o desejado estatuto. Mas, na hora sacramental, recusou-se a apertar as mãos das exatas autoridades que poderiam conceder tal estatuto.
Informa o prefeito de Lausanne que o problema, aparentemente, estava no sexo dos representantes oficiais. O imigrante muçulmano recusou apertar a mão a uma mulher e a imigrante muçulmana reagiu da mesma forma quando confrontada com a manápula masculina. Não houve cidadania para ninguém.
O caso, compreensivelmente, despertou nova polêmica no mundo encantado do multiculturalismo. Se a religião islâmica não recomenda contato físico com estranhos do sexo oposto, a Suíça deveria tolerar a religião dos outros.
As autoridades discordam: uma coisa é tolerar a religião alheia; outra é permitir que essa religião viole a constituição e a lei em matéria de "igualdade de gênero". Quem tem razão?
Já vou responder à pergunta. Mas, quando lia a notícia, uma dúvida instalou-se na minha cabeça: se o Ocidente, um antro de promiscuidade onde toda gente cumprimenta toda gente, é a encarnação mais próxima do inferno, o que leva certas mentalidades a escolher esse Ocidente como destino?
Imagino o oposto: gosto de escrever o que penso, indiferente às sensibilidades do auditório. Será que isso me levaria a migrar para uma sociedade repressiva, com censura oficial, e onde o "delito de opinião" é premiado com dezenas de chibatadas?
Mas não foi apenas a dúvida que me assaltou; foi uma sensação de desconforto com a falta de maneiras do casal. Se as autoridades suíças concediam o direito de cidadania, por que motivo os dois imigrantes não agiram com reciprocidade?
"Reciprocidade" é o termo —um termo usualmente ausente da reflexão multiculturalista. Mas há exceções. Uma delas é o historiador Simon Rabinovitch, que defende precisamente o conceito de "reciprocidade" no trato entre diferentes grupos.
Em ensaio recente para a incontornável Aeon.com, Ravinovitch critica o conceito de "tolerância", sobretudo quando aplicado a grupos religiosos.
Para ele, a "tolerância" sempre foi usada pelas maiorias como forma de controlar as minorias. A relação entre a maioria cristã e a minoria judaica ilustra o ponto: a primeira só tolerou a segunda quando pretendia algum ganho com isso.
Não vou tão longe. Admito que a palavra "tolerância", ao contrário de "respeito", transporte uma certa dose de altivez e condescendência.
Mas, politicamente falando, a tolerância "liberal" nasceu da evidência empírica de que a "indiferença à diferença" era preferível a uma destruição mútua.
Nesse quesito, Ravinovitch está errado: John Locke não pretendia proteger o cristianismo oficial com a sua famosa "Carta sobre a Tolerância". Pretendia defender uma ordem civil pacífica, depois de um século de sangue.
Acontece que Ravinovitch não está errado quando prefere o conceito de "reciprocidade" sobre o de "tolerância". Primeiro, porque a passividade da tolerância pode ser a antecâmera de horrores vários (como Karl Popper sabia, tendo testemunhado a ascensão do nazifascismo e a inação suicidária do liberalismo).
Mas, sobretudo, porque só a reciprocidade, que na sua formulação mais básica pode ser resumida a um "amor com amor se paga" (formulação minha, não de Ravinovitch), é capaz de transformar uma sociedade de estranhos numa comunidade de vizinhos.
Ou, como escreve o autor, só a reciprocidade permite a troca social e cultural que enriquece as sociedades de acolhimento e os imigrantes que a procuram.
Tradução: se me oferecem algo (segurança, liberdade, direitos sociais etc.), eu ofereço algo em troca (por exemplo, não ser desrespeitoso perante os meus anfitriões).
O episódio suíço, antes de tudo mais, é um caso gritante de falta de reciprocidade: a um gesto de boa vontade, seguiu-se um gesto de má vontade.
Recusar a cidadania foi, ironicamente, a única forma que os suíços tiveram de honrar a ética da reciprocidade.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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