Com consultas de enfermeiros, acesso à saúde cresce 30% em Florianópolis
Diagnóstico da sífilis triplica após município capacitar profissionais para o cuidado; Conselho de medicina é contrário à medida
Cláudia Collucci
FLORIANÓPOLIS
O aposentado José Manuel Vasques, 65, chega à unidade de saúde para renovar a receita do anti-hipertensivo. Diabético e um pouco anêmico, ele é acompanhado por uma equipe de saúde da família em Florianópolis (SC).
No consultório, o enfermeiro Mateus da Silva Kretzer pergunta como Vasques está se sentindo, olha o prontuário no computador, checa as medicações usadas e mede a pressão arterial. Tudo em ordem. Quinze minutos depois, o aposentado é liberado.
"Às vezes, me consulto com a médica, outras passo só com o enfermeiro. Mas nunca saio daqui sem ser atendido", diz o aposentado que perdeu o plano de saúde em 2013 e desde então é atendido no SUS.
Capital com a maior cobertura de saúde da família do país, Florianópolis tem capacitado a enfermagem para fazer consultas, prescrever remédios, renovar receitas, além de pedir exames de acompanhamento do paciente (por exemplo, de glicemia).
Nas unidades de saúde, esse profissional tem consultório próprio e divide com o médico de família o cuidado de diabéticos e hipertensos controlados, o acompanhamento do pré-natal de baixo risco e a testagem e o tratamento de pessoas com HIV e sífilis, entre outras doenças, além de exames preventivos de câncer de colo uterino e de mama.
Desde 2013, quando os enfermeiros passaram a ter uma atuação clínica mais efetiva, com base em protocolos, houve um aumento de 30% do acesso da população aos serviços de saúde, chegando a 210.404 pessoas em 2016 (últimos dados consolidados).
"O importante foi não só aumentar o acesso mas qualificar a rede, garantir que o serviço seja prestado dentro da melhor evidência científica existente", afirma Elizimara Siqueira, responsável pela enfermagem da rede municipal de Florianópolis e conselheira do Conselho Regional de Enfermagem de Santa Catarina.
Os protocolos clínicos de enfermagem de Florianópolis seguem recomendações do Ministério da Saúde e do Cofen (Conselho Federal de Enfermagem). Também se baseiam em diretrizes de instituições renomadas como BMJ (British Medical Journal) e e Cochrane (uma rede de cientistas independentes que investigam a efetividade de tratamentos).
O tratamento inicial de sífilis na capital triplicou. Entre 2013 e 2016, a média de casos novos atendidos por médicos e família e clínicos-gerais, era de 20 por mês.
A partir de 2016, já com a enfermagem treinada para esse tipo de cuidado, o número mensal de novos pacientes pulou para 70. Os enfermeiros fazem o teste rápido para a detecção da doença e, se positivo, imediatamente já medicam o paciente com penicilina.
"Em muitos lugares do nosso país, a gente vê a doença na nossa cara e não pode tratar", diz a enfermeira Anna Carolina Rodrigues, do departamento de vigilância de Florianópolis.
Em outras situações, porém, a enfermagem faz o trabalho de diagnóstico e tratamento da sífilis de forma camuflada, com aval do médico da unidade.
"É muito frequente em unidades de saúde do país o enfermeiro bater na porta do médico já com a prescrição pronta [de penicilina] e só pedir para ele assinar", diz Elizimara.
Uma recente parceria entre a Opas (Organização Panamericana de Saúde) e o Cofen quer ampliar a atuação clínica dos enfermeiros no SUS como forma de aumentar o acesso e a eficiência dos serviços de atenção básica à saúde, como ocorre em países como Reino Unido e Canadá. Relatório do Banco Mundial também faz a mesma recomendação.
A proposta é treinar esses profissionais para uma enfermagem de práticas avançadas, que envolverá um mestrado profissional ou uma residência na especialidade.
Mas a atuação clínica desses profissionais enfrenta resistência dos conselhos médicos. Ano passado, o CFM (Conselho Federal de Medicina) ingressou com ação na Justiça tentando proibir essas atividades da enfermagem sob alegação de que elas invadiriam as atribuições dos médicos. O caso foi arquivado.
Para Donizetti Giamberardino, coordenador da comissão de defesa do SUS do CFM, o embate não é motivado por corporativismo, mas sim por uma busca de igualdade de condições para o paciente SUS.
"Defendemos os princípios de universalidade e equidade do SUS, a mesma medicina de qualidade para todos."
"Defendemos os princípios de universalidade e equidade do SUS, a mesma medicina de qualidade para todos."
Segundo ele, o sistema deve ser multiprofissional, mas sem substituição do médico por outro profissional da saúde. Afirma ainda que os protocolos clínicos de enfermagem geram uma preocupação em relação à segurança do paciente porque o diagnóstico envolve muitas nuances que só o médico está capacitado para entendê-las.
No entanto, entre médicos de família e enfermeiros de Florianópolis, a convivência é harmônica. "Há um respeito mútuo e uma união de esforços para fazer o melhor possível pelo paciente. Sem o trabalho da enfermagem, não daríamos conta de atender a todos", diz a médica de família Danusa Graeff Chagas Pinto, coordenadora de uma unidade de saúde no bairro Saco Grande.
"Nossa prática não vem substituir o papel do médico em nenhum serviço de saúde. A ideia é fornecer à população o que lhe é direito e nós temos formação técnica para suprir, mas, por ignorância de gestores, nem sempre conseguimos executar", diz a enfermeira Anna Carolina.
Quase dois terços dos 303 enfermeiros da capital catarinense têm formação em medicina de família. O município mantém uma residência na especialidade para médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde.
"A gente não abre mão da evidência. Tanto para a segurança do profissional quanto para o do paciente. E não é só um copia e cola dos estudos. Levantamos toda a evidência de um tema, há uma comissão que opina, questiona. A rede é parte da construção do protocolo", explica Elizimara.
Os protocolos também são baseados nas demandas diagnosticadas na ponta, ou seja, no tipo de problema que mais está chegando ao posto de saúde. Um deles, por exemplo, é sobre o tratamento da dor, de feridas e da tosse.
"O enfermeiro cuida de 85% a 90% da demanda espontânea [sem agendamento]. A gente não quer estar porta de entrada só fazendo triagem do que o médico vai atender ou não atender. A gente quer ser resolutivo", diz Elizimara.
A enfermagem trabalha ainda com busca ativa de pacientes com doenças infectocontagiosas e os crônicos. "Se o paciente se ausenta ou não conclui determinado tratamento, temos o hábito de ir atrás." Os profissionais também foram capacitados para comunicações difíceis, por exemplo, como dar a notícia que o paciente tem HIV.
"A gente sensibiliza o paciente a fazer o teste, estabelece um vínculo com ele e não pode perder a oportunidade de tratá-lo. Não faz sentido dizer: "agora [com o resultado positivo] você volta outro dia para passar com o médico." Você perde o paciente", explica a coordenadora.
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