Um dos mais delicados problemas que cercam o exercício da política nas atuais sociedades democráticas é o da emergência de uma burocracia não eleita que, por delegação da autoridade eleita, tende a escapar dos famosos controles dos freios e contrapesos, fundamento da República.
Constituíram-se em “agências reguladoras”, cujos membros são escolhidos por concurso público ou pela autoridade eleita com a aprovação do Poder Legislativo. A eles se deram poderes especiais (mandato fixo e inamovibilidade), justificados, paradoxalmente, pela necessidade de protegê-los de toda a pressão política...
Assim, as decisões “políticas” são entregues a cidadãos “não políticos” (advogados, economistas, engenheiros etc.), que seriam —por definição— portadores de um saber técnico (às vezes, pretendido científico) e, portanto, acima da compreensão do eleito e do seu eleitor.
Com isso, cria-se um déficit democrático que exige alguma forma de acomodar a pretendida competência profissional com o pretendido desejo do eleitor expresso na escolha do seu eleito.
Por que tanta dificuldade? Porque não é claro que exista uma verdade indisputada na qual seriam portadores os membros das “agências”. Mais. É duvidoso que eles não incorporem, também, algum viés derivado de peculiares visões do mundo, criadoras de alternativas ideológicas.
O fato é que, a despeito dessa problemática, é inegável a necessidade de uma divisão do trabalho para garantir a eficiência funcional na democracia moderna. A grande questão é como coordenar a ação das “agências”, o que é tarefa do Executivo, e como submetê-las ao controle do Parlamento.
Um exemplo. No ano passado, foi convertida em lei (13.448/2017) uma medida provisória que facilita a prorrogação de concessões inadimplentes de estradas de ferro.
A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) negociou com as concessionárias a prorrogação, como era seu dever. O Ministério Público Federal, também cumprindo o seu dever, ingressou com uma ação de inconstitucionalidade contra a prorrogação. Tudo certo!
O problema é que a lei foi aprovada no Congresso depois de longos debates e de audiências públicas, e é pouco provável que a Advocacia-Geral da União não a tenha examinado antes da sua sanção. Agora sugere-se que fere a Constituição. Tudo certo!
Mas quanto tempo tomará a decisão e a quem se debitará o custo social do imbróglio? Será que a divisão de trabalho entre três poderes independentes, mas harmônicos, parece já não dar conta do recado diante da evolução de nossas instituições?
Como enfrentará essa questão o futuro “salvador da pátria”?
Antonio Delfim Netto
Economista, ex-ministro da Fazenda (1967-1974). É autor de “O Problema do Café no Brasil”.
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