Quem escreve fica assombrado com a história de Euclides da Cunha ter corrigido as páginas impressas da primeira edição de Os Sertões, uma a uma, raspando os erros com canivete e usando caneta com pena fina. Quem escreve e se angústia com alguns (hoje poucos) erros, imagina o que foi Euclides, em 1902, sentado na editora, noites e dias, incansável, raspando acentos, vírgulas, trocando letras, para assombro dos gráficos. Foram 80 erros. Corrigiu um a um nos mil exemplares da edição. Não o fizesse, ficaria louco. Ou já era um pouco movido pela paixão. Isso temos de ser, loucos de paixão pelo que fazemos.
Daí um dos momentos de grande emoção para mim foi folhear - com o cuidado exigido - algumas páginas de um dos volumes sobre os quais Euclides trabalhou, na casa-museu a ele dedicada em São José do Rio Pardo, no sábado passado. Ficaria ali horas, o dia inteiro, em atitude reverente, e me sentindo pequeno, minúsculo, poeira.
Escritores que fazem a via-sacra de editores, devem saber que, pronto o livro, Euclides teve a promessa de edição em segmentos neste jornal, O Estado de S. Paulo, e esperou. Esperou com a mesma paciência que teve ao corrigir. Seis meses depois, nada. Então, amigos levaram o autor ao Rio de Janeiro, à Livraria Laemmert, que o publicou. Euclides pagou a edição que custou o dobro de seu salário. Em oito dias, metade da edição se esgotou.
Claro que aqui escrevo para leigos e não para euclidianos, os especialistas na matéria, entre eles a araraquarense Walnice Nogueira Galvão que organizou a excelente (e bela) edição da UBU-Sesc. Esses estudiosos e apaixonados se reúnem anualmente na Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo, e ali fui para a 80.ª edição. Palestras, cursos, aulas durante dez dias. A Academia Paulista de Letras ali esteve por quatro dias com Gabriel Chalita, José Renato Nalini, Mauricio de Sousa e eu. Esta é a nova academia. Estar onde as coisas acontecem, não se confinar na sede do Arouche.
Coincidências, acasos? Fiz minha fala no mesmo dia em que, antes de partir de São Paulo, recebi da editora o primeiro volume de Desta terra Nada Vai Sobrar, a Não Ser o Vento Que Sopra Sobre Ela, meu novo romance. Chegou quentinho, recém-saído da gráfica. Eu entrando na van e o motoboy me entregando o livro. É um velho acordo entre Luis Alves, meu editor, e eu. Uma das epígrafes do romance é uma frase de Os Sertões: “A vida normalizara-se naquela anormalidade”. É ou não o Brasil de hoje? Dentro do livro, na página 221, o personagem Felipe viaja em um ônibus atravessando uma paisagem lunar de regiões que foram alagadas pela lama do estouro da barragem em Mariana. Seu companheiro de viagem é Euclides da Cunha, que vai mostrando os terrenos e definindo-os com breves frases de Os Sertões. “Uma geografia impressionadora”, diz. O romance se passa no futuro, mas Euclides ali está, porque um autor faz o que quer para explicar o hoje, atravessa/inventa o tempo, mistura, confunde história, o que parece amanhã pode ser o hoje transplantado. O anormal hoje é o normal.
A vida marca seus pontos e liga-os à sua maneira. No momento em que me convidou para a semana, Ana Paula Lacerda, diretora de Cultura e curadora da Casa de Cultura Euclides da Cunha, não tinha a mínima ideia de que Euclides permeava esse romance. Assim, levei aquele exemplar e a plateia daquela noite foi a primeira a ver o livro que lançarei aqui em São Paulo, no dia 24 de agosto, na Cultura da Paulista. Fiquei 11 anos sem publicar romances. Porém as coisas começaram a me sufocar, apertar, alucinar, sentei-me e conclui após quatro anos. De volta àquele modo satírico, irônico, deprimente, contundente que usei em Não Verás País Nenhum.
Se, além dos professores que tive e sempre cito, tivesse tido aulas com Nicola Costa, eu teria sido outro, estaria alguns pontos adiante. Nem imaginam. Não foi pouco o que aprendi com esse homem no sábado, circulando por São José. O que me foi aclarado sobre Euclides, sua vida trágica, sua neurastenia, ansiedade, o que soube sobre Canudos, a guerra, o Conselheiro, a vila, a mortandade, os crimes praticados pelo Exército. Só a Matadeira daria um romance. Ah, a Matadeira! Esperem.
Fiquei um dia em São José do Rio Pardo, mas levado pelo secretário de Cultura da cidade, Iuri Feres Abraão, e pelo Nicola estive na ponte que Euclides construiu, na pequena cabana de zinco e madeira, onde foi escrita parte do livro, um lugar ajardinado, frente ao rio murmurante e à floresta amena e uma versão estilizada em concreto da “matadeira”, debaixo da qual estão sepultados Euclides e o filho, ambos mortos pelo mesmo homem.
Depois fui tomar café torrado e moído na hora no Senhor Espresso, onde você escolhe o tipo que deseja e Rodrigo cuida do resto. Ali também havia um Mil Folhas - que parecia ter dez mil folhas que derretiam na boca - como só comi no Gigetto, 60 anos atrás. E ainda me levaram ao Bafafá, porque ali, me disseram, se faz uma coxinha única, celebrada até pelo Jefferson Rueda, esse mesmo chef da Casa do Porco, do Hot Pork e da Sorveteria do Centro, aqui em São Paulo, e marido da Janaina, do Bar Dona Onça. Porque Jefferson é de São José e criança ainda deve ter atravessado aquela ponte histórica muitas vezes, enquanto eu só fui vê-la aos 82 anos. De qualquer modo, a vida liga tudo. Na minha mesa, ao lado da caixa vermelha envernizada onde meu avô guardava suas bolinhas de vidro, contemplo um troféu que me deram. Um elo de ferro da ponte de São José do Rio Pardo, trocado em uma das muitas manutenções. Símbolo, prêmio, troféu a me embalar.
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