domingo, 19 de agosto de 2018

Javali, o reflexo suíno da divisão política brasileira, Época

Citado em debate de governadores do estado, animal causa polêmica entre ambientalistas e agricultores

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Javali, porco ou javaporco: os suínos que provocaram o debate entre Márcio França e João Doria - Divulgação / Ibama
No caso da Lei de Proteção da Fauna, a regra é clara: é proibida a perseguição e caça de quaisquer espécies. Em 2013, o Ibama publicou uma instrução normativa também bastante clara: considera-se controle do javali sua perseguição, o abate, a captura e marcação. Pode isso?
Em um país nada acostumado à caça, o nervoso animal foi o protagonista do debate mais tenso entre o ex-prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), e o atual governador, Márcio França (PSB), no primeiro debate entre os postulantes ao Palácio dos Bandeirantes nesta quinta-feira. Logo no estado mais urbanizado do país, que se orgulha de ser a "locomotiva do Brasil", dois dos principais candidatos engataram um debate polêmico sobre os bichos: o que fazer com os javalis?
A briga começou porque Márcio França foi questionado por um jornalista sobre a proibição da caça aos porcos selvagens no estado, realizada em julho deste ano após pressão de grupos ambientalistas. Um projeto de lei de autoria do deputado estadual Ricardo Tripoli, do PV, foi aprovado no Legislativo e sancionado por França, para comemoração dos amigos dos javalis. Acontece que a espécie também é considerada, pelos agricultores, uma praga: pesados e com grande apetite para o milho, costumam destruir lavouras e são reservatórios de doenças, como a febre aftosa.
França negou que tenha proibido a caça dos animais, atribuiu o fato à Assembléia Legislativa (Alesp) e afirmou que seu governo pretende apenas controlar esse tipo de prática:
— Eu não proibi caça de javali. A assembleia que o fez. É claro que queremos ter controle. Mas não pode ser como se fosse um esporte. Tinha anúncio em jornal dizendo 'não faça safari na áfrica, faça em São Paulo'.
Ao comentar o tema, Doria insistiu que a proibição da caça tinha sido patrocinada por França. E ironizou ao dizer que fica feliz que o governador havia mudado de ideia. França reagiu com irritação e acusou Doria de traição ao deixar a prefeitura da capital para disputar o cargo ao estado. Doria pediu direito de resposta, que acabou rejeitado.
A ENCRUZILHADA DO JAVALI
Para o Ibama, o javali é uma "espécie exótica invasora". No dicionário dos biólogos, essa definição tem um significado: problema. Em outras palavras: em primeiro lugar, o javali não era para estar aqui (exótico). Como se isso não bastasse, só causa desequilíbrio social, econômico e ambiental (invasor). É o caso, além do javali, do coral-sol ou do mexilhão-dourado no Brasil. Ao Ministério do Meio Ambiente cabe criar mecanismos de controle dessas espécies. O javali, contudo, não é nenhum coral ou mexilhão: seu método de controle é a caça, proibida no Brasil. O javali colocou o governo brasileiro numa encruzilhada.
— O problema do javali é que o método de controle é no abate ou na captura e abate. Mas as técnicas de caça são proibidas no Brasil. Para caçar, você precisa de pessoa especializada, equipamento especializado, armamento específico. E aí esbarramos na questão do porte de armas. O javali forçou o Estado a pensar em caça — explica Carlos Henrique Salvador, consultor do "Plano Javali" feito pelo Ibama para controlá-los e um dos principais especialistas na proliferação deles.
Ambientalistas obviamente foram contra: afinal de contas, a caça é proibida e ponto final. Por isso, os grupos de proteção animal apoiaram o projeto na Alesp e comemoram quando o governador de São Paulo sancionou a proibição da caça no estado.
De outro lado, agricultores fazem pressão, já que querem que o animal que inviabiliza boa parte de suas lavouras seja controlado, preferencialmente na bala e, se possível, de forma legal. Trata-se de uma discussão polarizada, o reflexo suíno da divisão política brasileira. E assim como grandes questões nacionais, como descriminalização das drogas, um tema sério.
Desde 2008 há idas e vindas. Hoje, os ambientalistas estão perdendo. Em 2013, o Ibama permitiu o abate dos javalis chamando de controle o que, na prática, é caça.
Mas se até decisões do Supremo Tribunal Federal sofrem para serem cumpridas nos dias de hoje, não seria uma instrução normativa do Ibama que conseguiria tal proeza. Os setores de proteção aos animais tentam fazer a onda virar a favor dos javalis de seu jeito. Imagens de javalis sendo alvejados são compartilhados nas redes sociais. Entre outras pessoas, o sofrimento dos animais tocou os parlamentares paulistas que, em 2018, aprovaram uma lei proibindo a caça.
Segundo seu autor, o deputado estadual Ricardo Tripoli (PV), eleito com a bandeira pró-bichos, o chamado "manejo de controle" significou a perseguição, captura e abate dos javalis. E continua: "com o uso de armamento pesado, muitos são alvejados e agonizam, por dias, antes do óbito. Utilizados na maior parte das caçadas, cães são destroçados por aquela espécie, em uma luta sangrenta e desigual". De acordo com seu projeto de lei, há alternativas à caça de controle. "Inadmissível, entretanto, que a superpopulação de certa espécie sirva de pretexto para se instituir a caça em todo o país."
Um ponto em especial é levantado pelo deputado estadual: após a introdução da caça, ao invés de começarem a sumir, os javalis apareceram em novos municípios: "Não se ignora que o caçador não deseja que a espécie alvo seja erradicada, pois sua atividade seria interrompida", explicou o deputado, na justificativa do projeto de lei. "Além de não resultar em controle populacional, a caça ainda promove a dispersão desses animais."
A lei tramitou na Alesp, onde foi aprovada e depois sancionada pelo governador Márcio França, que acreditava estar ganhando pontos com os defensores dos animais. O tiro saiu pela culatra. A partir daí, agricultores se revoltaram e, por meio da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo (Faesp), começaram o lobby reverso. Em julho, França e seus secretários do Meio Ambiente, Eduardo Trani, e da Agricultura, Francisco Jardim, se reuniram com o presidente da Faesp. Na semana passada, o governo paulista, na prática, voltou atrás — daí a explicação de França sobre não ter mudado de opinião. Na prática, assim como o Ibama em âmbito nacional, viabilizou a caça chamando-a de controle.
A lei estadual continua em vigor, mas uma resolução conjunta das duas secretarias, do Meio Ambiente e da Agricultura, autoriza "ações de controle populacional" aos produtores prejudicados pelo javali. Os produtores precisarão enviar ao Sistema Integrado de Gestão da Fauna Silvestre a localização da propriedade, o histórico de ocorrência de javalis, uma estimativa de dano e a relação dos "controladores". Estes, por sua vez, deverão enviar o método de captura e forma de abate, especificando quais equipamentos utilizarão e a destinação dos animais abatidos. Curiosamente, caso as autorizações não sejam emitidas em 30 dias, o requerente poderá considerar-se autorizado a iniciar a atividade, afirma a Faesp.
Na internet, grupos defendem a chamada "caça conservacionista" no Brasil, como a ONG "Brasil Safari Clube". O grupo é o responsável por organizar o "Congresso Brasileiro de Caça".
JAVALI OR NOT JAVALI
O javali está para o porco assim como os lobos estão para o cachorro. São seus sobreviventes selvagens, os que restaram após séculos de domesticação. Não raro, os dois, javali e porco, cruzam entre si, formando o híbrido "javaporco". O Ibama definiu que todos podem ser chamados de javali. São considerados mamíferos grandes e generalistas, isto é, que comem de tudo. Bastante resistentes, conseguem viver em praticamente qualquer lugar: floresta, campos e... lavouras.
Sua história é curiosa: foram introduzidos em território nacional na década de 1950 por zoológicos. A partir da década de 1980, alguns empresários se interessaram em vender carne de javali, pensavam que seria um produto diferenciado — o porco sempre foi um sucesso, afinal de contas. Não deu certo. A partir de 1995, a população começou a crescer, com javalis fugindo dos cativeiros que ficavam no sul do país em direção ao norte. Hoje, estima-se que há javalis em cerca de 600 municípios brasileiros. Eles andam em grupos e, portanto, causam ainda mais confusão quando chegam. Como não há predadores, vão se proliferando rapidamente. A cada ano, uma javali fêmea consegue ter de 10 a 12 filhotes.
— (O javali) Gosta muito de certos tipos de alimentos. Ele bate numa lavoura de milho, faz um estrago grande. Derruba as plantas, pisoteia, vai quebrando os pés. Ele não come tudo, mas derruba muito. Pro agricultor o que vale é a perda total: ele perdeu a produção. Esse é problema mais imediato e sentido com o javali — explica Carlos Henrique.
Mas não é o único. Os javalis também são considerados reservatórios de doenças. Apesar de todo o investimento nas barreiras sanitárias nos porcos realizados pelo governo brasileiro, os javalis estão fora dessa proteção. São selvagens, afinal de contas.
— Eles não têm os mesmos cuidados e carregam aquelas doenças que a indústria estava querendo acabar. Esse risco sanitário é iminente e pode explodir. Ainda não aconteceu mas eles ficam sem cobertura do sistema sanitário. Então, é uma questão de tempo. Pode nunca acontecer nada ou pode acontecer algo amanhã — diz.
Como se isso não bastasse, tem um perigoso efeito ambiental. Segundo Salvador, javalis comem ovos de aves ameaçadas, competem com outros animais e prejudicam o equilíbrio de outros. Para ele, contudo, é impossível falar em erradicação no momento. O biólogo, no entanto, acredita que a regulamentação atual, que permite o controle por caça do javali, já é um avanço.
— Quem é contra tem toda razão de levantar essas críticas. Mas sem a regulamentação, quem vai atuar na caça são os irregulares, que vai atuar com regulamentação ou desregulamentação. Pra ele, tanto faz. Quando você regulamenta, muita gente preparada vai começar a atuar, estão dispostas a usar o equipamento certo. Para o bem-estar animal é um ganho — diz Carlos Henrique, que captura javalis em trabalhos de ecologia. Ele diz que eventualmente vê animais abatidos que se machucaram seriamente por usos de projéteis errados ou por falta de experiência. — A falta de regulamentação promove mais os maus tratos do que a regulamentação. A atual tem suas falhas, ela pode ser melhorada, não é a primeira regulamentação que existe. É algo muito recente.


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