quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Aborto já, FSP

Já reclamei aqui da sem-cerimônia com que ministros do Supremo vêm tomando decisões que não encontram previsão expressa nas leis nem na Carta. Tem faltado ao STF a chamada autocontenção. Ainda assim, penso que a corte máxima fará bem se declarar inconstitucional a proibição do aborto. Como explicar a aparente contradição?
Como regra geral, o juiz não pode mesmo substituir o legislador. Falta-lhe, para início de conversa, o mandato popular. Mesmo que a ausência de representatividade não fosse um problema, seria temerário concentrar num único indivíduo ou num colégio restrito o poder de elaborar e, ao mesmo tempo, aplicar as leis. A democracia, que é um jogo de freios e contrapesos, repele tal arranjo.
Mas a democracia tampouco pode dar-se ao luxo de ficar refém de um Poder ou da maioria dos cidadãos. Imagine-se, a título de experimento mental, que 51% dos eleitores tenham concluído que precisam de servos e elegem um Parlamento que reintroduz a escravidão no ordenamento jurídico.
Absurdo? Sem dúvida. É para evitar que variações em torno desse exemplo se tornem realidade que a Carta confere à Justiça o poder de invalidar leis julgadas inconstitucionais. O fato de juízes terem essa capacidade não significa que devam usá-la sempre. Para o jogo democrático fluir, é necessário que os magistrados saibam conter-se, só se valendo de poderes excepcionais em situações excepcionais.
A meu ver, o ativismo judicial pelo STF se justifica apenas para ampliar direitos individuais já contidos em princípios enunciados na Carta, mas que o Congresso, por alguma razão, não atualiza. Um teste prático é olhar para direitos que já tenham sido consolidados em democracias mais maduras, como o aborto e a despenalização do consumo de drogas. Não dá para aceitar que, em pleno século 21, pessoas precisem da autorização de vizinhos para definir o que vão colocar ou tirar de seus próprios corpos.


Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

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