quarta-feira, 27 de agosto de 2025

A Biblioteca dos imortais, Alexandre Marcos Pereira, In APMP

 Naquela manhã cinzenta, acordei com a estranha sensação de que o tempo havia se recolhido. O relógio não marcava horas — ele meditava. As paredes da casa pareciam mais espessas, como se feitas de papel de arroz filosófico, e as estantes ganhavam vida, cochichando entre si como velhos mestres em sussurros socráticos. Era o dia em que todos os livros de filosofia resolveram conversar entre si. A República de Platão desceu soberana de sua prateleira dourada. Sentou-se sobre a mesa como quem se prepara para julgar a alma do leitor. “A justiça é a harmonia entre as partes da alma”, disse ela, com ares de professor helênico. A seu lado, Ética a Nicômaco, mais serena, ponderava: “Não basta a harmonia, é preciso agir conforme a virtude, em ato e potência”. Nisso, o tombo sonoro de Crítica da Razão Pura que se espatifava no chão como uma tese mal formulada. Kant, sempre pontual e metódico, não tolerava atrasos nem devaneios. “Ordem, senhores! Sem condições de possibilidade, nenhuma experiência é possível! A razão deve traçar os limites de si mesma!” Todos se calaram — menos Nietzsche. Assim Falou Zaratustra dançava sobre a cadeira, completamente nu de ilusões, proclamando: “Deus está morto! E fomos nós que o matamos com nossos tratados!” Platão se remexeu. Aristóteles pigarreou. Kant revirou os olhos com desprezo prussiano. Mas A Vontade de Potência, ali ao lado, completava a dança com um sorriso debochado, como quem diz: “Ele tem razão... mas só até certo ponto.” Foi então que entrou Ser e Tempo, de Heidegger, arrastando os chinelos como um velho fantasma germânico. Sentou-se em silêncio, olhando para todos com o peso de mil séculos. “O ser não é. Ele se mostra no tempo. E é na angústia que nos damos conta de que existimos.” Nietzsche acenou com o cálice. Sartre, por sua vez, soltou uma baforada imaginária de cigarro e resmungou com ares de existencialista parisiense: “A existência precede a essência. O inferno são os outros — mas ao menos servem vinho.” O Ser e o Nada ocupou a poltrona mais funda da sala, aquela onde os amantes se perdem em madrugadas solitárias. Olhou para mim, como se me reconhecesse. “Você ainda acredita que é livre? Ou já entendeu que está condenado à liberdade?” As luzes piscavam. Lá fora, Foucault batia na janela com sua capa de arquivista revolucionário. Trazia consigo Vigiar e Punir como se fosse um prontuário secular da humanidade. “A alma não é um dom, é uma invenção do poder. Cuidado com quem te observa — às vezes é você mesmo.” Entrei em pânico. Corri para o espelho: não vi nada. Nesse instante, O Segundo Sexo de Simone de Beauvoir desceu com fúria e lucidez, rasgando as cortinas da sala com um único gesto. “Não se nasce mulher, torna-se mulher. E o mesmo vale para qualquer identidade que se queira verdadeira. Vocês todos, filósofos, têm falado demais e escutado de menos.” A sala silenciou. Platão tentou argumentar, mas foi interrompido por um olhar glacial. Por fim, entrou David Hume com um sorriso cético e gentil. Carregava Investigação sobre o Entendimento Humano debaixo do braço e uma taça de vinho tinto. “Não confiem tanto na razão. Acreditamos mais por hábito do que por certeza. No fundo, estamos todos apostando em nossas crenças como quem aposta nos dados.” Nietzsche brindou. Sartre assentiu. Beauvoir ergueu sua taça. E eu? Eu acordei. Estava na minha poltrona, com um desses livros nas mãos. As páginas ainda tremiam. O café esfriava. Mas lá fora, o tempo voltava a andar — como se tudo aquilo tivesse sido um sonho ou, quem sabe, um lampejo de verdade. Fechei os olhos. Ainda sentia o perfume de Foucault, o hálito de Sartre, o gesto brusco de Simone, o olhar sombrio de Heidegger. E pensei: talvez a filosofia não sirva para responder, mas para tornar a existência uma pergunta eterna — feita de carne, espanto e desejo. A estante sussurrou de novo. Desta vez, em silêncio. 

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Sozinho o medidor não faz a rede inteligente, Joisa Dutra,FSP

 A digitalização é apontada como um dos pilares da transição energética. Mas, afinal, medidores inteligentes bastam para tornar redes e serviços inteligentes? Exploro o tema nesse artigo respondendo a um conjunto de perguntas: digitalizar para quê, para quem e a que custo?

O futuro que parecia ficção na "casa dos Jetsons" já começa a entrar na vida real dos moradores da Grande São Paulo. Depois da Enel-SP iniciar a instalação de medidores inteligentes de eletricidade, agora a Sabesp anuncia planos ambiciosos de adotar a tecnologia na água. Passos ainda lentos, mas que revelam um movimento maior: o Ministério de Minas e Energia publicou neste ano a Portaria 111, que define diretrizes para a digitalização das redes de distribuição. O ministro Alexandre Silveira tem pressa. Pediu às distribuidoras que apresentem suas avaliações e planos, boa oportunidade em um momento em que avança a prorrogação de contratos de concessão.

A imagem mostra uma placa da Enel com o nome 'Estação Cambuci' em destaque, em frente a uma instalação elétrica. Ao fundo, há estruturas de transformadores e cabos elétricos, com cercas de arame farpado ao redor da área.
Subsestação de energia em São Paulo, Brasil - Amanda Perobelli - 26.mar.2025/Reuters

A pergunta é: como garantir que também o consumidor se beneficie dessa onda digital? No país, menos de 5% dos 90 milhões de medidores são inteligentes. Três lições internacionais —e um estudo recente desenvolvido no Brasil— ajudam a iluminar o caminho.

Lição 1

Não é para todos, pelo menos não agora. Planos universais soam inclusivos, mas ignoram realidades distintas. Não faz sentido tratar do mesmo modo o centro de uma metrópole como São Paulo e uma pequena cidade do interior. E mais: a experiência italiana mostra que digitalização deve ser faseada no tempo e no espaço.

A Enel foi pioneira com o programa Telegestore, implantado entre 2001 e 2006, que substituiu 30 milhões de medidores analógicos por digitais. Anos depois, iniciou uma segunda geração (Telegestore 2G), mais sofisticada e com maior interação com os consumidores. A interação com o regulador foi importante para decidir a nova configuração, que se preocupa mais com os benefícios para usuários.

Na Europa, a digitalização já percorreu um longo caminho. Cerca de 63% das residências possuem medidores inteligentes, e a expectativa é que esse índice chegue a 78% até 2028. Países como Espanha, Suécia e Finlândia praticamente concluíram a substituição, atingindo cobertura próxima a 100%. Isso mostra que o avanço tecnológico é possível —mas também reforça a lição de que a verdadeira inteligência da rede não vem apenas do equipamento em si, e sim de regulação adequada, desenho tarifário e integração entre diferentes utilities.

Lição 2

Não é tudo igual. Avaliar custo e benefício é essencial. Protocolos europeus de CBA (Cost-Benefit Analysis) mostram que os ganhos podem ir desde redução de custos operacionais (leitura manual dispensada, corte e religação remotos) até vantagens diretas para o consumidor, que pode ajustar seu consumo em função do preço da energia. Mas isso só funciona se o preço refletir a dinâmica do sistema — mais caro no fim da tarde, mais barato num dia ensolarado – o que por aqui ainda não é realidade. Aqui o quadro é outro: a tarifa é a mesma independente da hora do dia para mais de 80 milhões de consumidores – mais de 90% do mercado cativo das distribuidoras.

Estudo aplicado à realidade paulista confirmou esse ponto: os benefícios existem, mas variam conforme a regulação, o desenho tarifário e o engajamento dos usuários. Sem incentivos adequados, boa parte do ganho estimado pode simplesmente se perder. Mas o custo, fica.

Lição 3

Não resolve tudo. Medidores inteligentes não são bala de prata. Experiências em países como Reino Unido e EUA mostram que na prática as expectativas nem sempre se confirmam. Estudos de Brandon e coautores revelam que, mesmo com informação em mãos, quando bate o calor ou o frio, consumidores cedem ao desconforto e reprogramam termostatos, anulando ganhos de eficiência. John List, ao avaliar programas em Michigan, concluiu que não houve impacto significativo sobre o consumo de eletricidade ou gás. A lição é clara: reguladores não devem se apoiar apenas em estimativas de engenharia —comportamento humano importa, e muito.

E não é só na energia. A Sabesp, junto com a Vivo, já planeja medidores inteligentes de água. Isso reforça um ponto: sem convergência e interoperabilidade, corremos o risco de multiplicar equipamentos em cada casa e repassar ao consumidor uma conta ainda maior.

Na casa dos Jetsons, as máquinas eram cheias de promessa, mas viviam falhando. Para evitar esse destino em 2062, precisamos lembrar que a inteligência não está no medidor isolado, mas na do sistema que o conecta.

Auditor fiscal preso em SP pode ter aberto contas na Suíça para esquema bilionário de ICMS, diz MP, FSP

 

São Paulo

O auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto, preso desde o início de agosto por suspeita de liderar um esquema bilionário de manipulação de créditos de ICMS em São Paulo, é investigado por ter tentado abrir contas e offshores na Suíça a partir de 2022.

Documentos apreendidos pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) apontam a criação contas bancárias, além da compra de 10 mil euros (R$ 63 mil) e pagamento a intermediários.

O advogado Paulo Cunha Bueno, que representa Artur Gomes da Silva, afirma que a defesa ainda está analisando todos os elementos da investigação.

Um homem de terno cinza e gravata, com cabelo liso e escuro, está falando em um microfone. Ele parece estar em um evento ou conferência, com uma mesa à sua frente que tem um copo de água e um nome em um cartão. Ao fundo, há bandeiras do Brasil e de outros países visíveis através de uma janela.
O auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo - Divulgação

Segundo relatórios da investigação, o auditor fiscal investigado teria pago cerca de R$ 198 mil a intermediários para viabilizar a constituição de quatro empresas em paraísos fiscais e a abertura de cinco contas, físicas e jurídicas.

O MP-SP afirma que, em e-mail interceptado com autorização da Justiça, Silva Neto menciona um roteiro de reuniões em bancos suíços para "conclusão do processo de ativação da conta".

Os promotores batizaram essa frente da apuração de Operação Suíça. Outra ramificação, apelidada de Project Dolphin, mira contas abertas nas Bahamas. O MP-SP agora busca comprovar se houve de fato movimentação de valores e qual a origem dos recursos.

Silva Neto está preso desde o dia 12 de agosto, quando foi deflagrada a Operação Ícaro. O MP-SP afirma que ele atuava como um coringa do esquema, pois, segundo a promotoria, fazia orientação de executivos de grandes varejistas, a preparação de documentos, acelerava análises internas e autorizava a transferência de créditos para outras empresas, tudo mediante o suposto recebimento de propinas.

Segundo o MP-SP, o esquema tinha duas etapas. Na primeira, os servidores da Sefaz-SP (Secretaria de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo) suspeitos de corrupção agiriam para acelerar a emissão de créditos tributários a que empresas tinham direito.

Na segunda, o cálculo dos créditos tributários devidos seria adulterado e auditores fiscais apresentariam valores inflados, ainda de acordo com a apuração.

A secretaria afirma que, no primeiro semestre de 2023, Silva Neto deixou a função de supervisor da área responsável por esse tipo de processo. Os investigadores trabalham com a hipótese de que ele tenha recebido ajuda de outros servidores, uma vez que as irregularidades seguiram até sua prisão.

No último dia 21, a Sefaz-SP exonerou Silva Neto do cargo de auditor fiscal da Receita Estadual. A pasta também instaurou uma investigação interna, pelo qual outros seis auditores também são alvo e foram afastados.

A mãe de Silva Neto, a professora aposentada Kimio Mizukami da Silva, figura como sócia na Smart Tax, que, segundo os investigadores, recebia a propina de grandes varejistas, e do Dac Bank, que seria um falso banco para lavar os valores. Ela ainda será ouvida pelos investigadores.

A reportagem não localizou a defesa de Kimio Mizukami da Silva.

A Operação Ícaro já levou à prisão temporária de Silva Neto, Sidney Oliveira (dono da Ultrafarma), e Mário Otávio Gomes (diretor da Fast Shop). Na semana passada, a defesa do empresário Sidney Oliveira e do diretor Mário Otávio Gomes conseguiram suspender a fiança de R$ 25 milhões até o julgamento do caso.

A defesa de Gomes não comenta o caso e de Oliveira não se manifestou.

As investigações do MP-SP sobre o suposto esquema de créditos de ICMS seguem em andamento pelo Gedec (Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Delitos Econômicos).

Os acusados poderão responder por crimes tributários, lavagem de bens e valores e organização criminosa, cujas penas somadas ultrapassam dez anos de prisão.