sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Não tão determinados assim, Suzana Herculano-Houzel, FSP

 Adoro os livros do neurocientista Robert Sapolsky sobre estresse. "Por que as zebras não têm úlceras?" é uma introdução excelente à faca de dois gumes que é a capacidade de sofrer por antecipação; "Junk food Monkeys" tem ensaios deliciosos sobre nossos hábitos de primatas, baseados nas observações do autor sobre uma comunidade de babuínos selvagens que ele visitava regularmente no Quênia.

Seu livro mais recente, contudo, é para mim difícil de ler sem marcar e rabiscar o texto continuamente com meus protestos. Em "Determinados", lançado no Brasil em 2025, Sapolsky revela sua convicção de que não existe livre-arbítrio –e mais: sua crença em um mundo Laplaciano, determinista, onde a configuração atual de cada átomo e partícula subatômica do Universo define sucessivamente a configuração seguinte, e por conseguinte a configuração do cérebro define o destino de cada um. É literalmente uma declaração da sua crença em destino.

A imagem mostra um homem com uma longa barba grisalha e cabelo ondulado, usando um paletó escuro e uma camisa branca. Ele está olhando diretamente para a câmera, com um fundo escuro que destaca seu rosto e barba. A iluminação é suave, criando um efeito de destaque em seu rosto.
Robert M. Sapolsky, autor de 'Determinados: A Ciência da Vida sem Livre-arbítrio' - Thompson McLellan/Divulgação

Peculiar, quando logo em seguida, e ainda na introdução do livro, ele declara que acredita em mudança. Só pode ser porque a mudança também estava predeterminada, caso no qual ela não é de fato mudança, não é mesmo? Pela lógica dele, seus leitores que acaso mudem de opinião sobre o livre-arbítrio já deviam estar fadados a mudar de opinião. Deve ser frustrante escrever um livro assim, a não ser que ele também achasse que já estava escrito na configuração dos átomos do Universo que ele escreveria o livro, e que certos leitores mudariam de opinião... e que esta neurocientista protestaria.

Acho que Sapolsky, como tantos neurocientistas que já li, comete o erro básico de não definir seu tema, no caso "livre-arbítrio", antes de escrever um livro inteiro a respeito. A definição que ele oferece é uma não definição: ele somente aceitará que livre-arbítrio existe quando alguém lhe mostrar um neurônio ou um cérebro que gere comportamento sem ser influenciado pelo somatório do seu passado biológico. Primeiro, isso é uma safadeza, quando ele já sabe, melhor do que a maioria, que os detalhes da organização e do funcionamento de cada cérebro individual, e portanto do comportamento que ele produz, dependem da combinação de loterias genéticas, biológicas, e sociais. E segundo, e mais importante, nada disso tem a ver com livre-arbítrio.

Livre-arbítrio é a capacidade de ser agente do próprio futuro, tanto imediato quanto distante. Não termos poder sobre o futuro distante, por exemplo porque por definição raras pessoas se tornam astronauta ou presidente, não significa não ter agência sobre cada passo do caminho, ainda que no final os votos não cheguem ou a Nasa nos rejeite.

Sim, nosso cérebro é determinado por várias loterias. E isso não impede que, ao mesmo tempo, também tenhamos o poder de autodeterminação. Esta é a essência do livre-arbítrio, a qual reside na capacidade do nosso cérebro cheio de neurônios corticais de representar ações alternativas, cogitar a que estamos prestes a fazer, depois representar as consequências das nossas ações sobre os outros, e as consequências destas sobre nós mesmos, e só então seguir adiante... ou não.

Mudar de ideia é a capacidade mais importante do cérebro, e até Sapolsky acredita nela –ainda que ele ache que é só porque ele foi pré-determinado a pensar assim.


Tuberculose em centros para imigrantes dos EUA lembra surto vivido no fim do regime soviético, Laura Greenhalgh, FSP

 Digamos que a História seja feita de pessoas, fatos e coincidências. Sobre estas, vale retomar o recente encontro de Vladimir Putin e Donald Trump em Anchorage, no centro-sul do Alasca. Um encontro em que nada se decidiu, mas que, do lado americano, buscou-se dar uma relevância à altura dos grandes eventos políticos do século 20. No teatro midiático de Trump, Putin dominou a cena e sugeriu que um futuro encontro sobre a guerra na Ucrânia se passe em Moscou.

Se vier a acontecer por lá, o que não está definido nem previsto, a grandiosidade de Moscou intimidará Anchorage, com seus 291 mil habitantes e uma imponência emprestada dos montes nevados Chugach. Contudo, ontem e hoje, coincidências históricas aproximam as duas cidades.

A imagem mostra um grupo de manifestantes em um protesto ao ar livre. Algumas pessoas seguram cartazes, incluindo um que diz 'ICE OUT OF NYC'. Os manifestantes estão vestidos de maneira variada, com algumas pessoas usando máscaras. O cenário é urbano, com edifícios ao fundo e um céu claro.
Manifestantes protestam contra política de imigração de Donald Trump em frente ao tribunal de imigração de Nova York - Spencer Platt - 11.ago.25/Getty Images via AFP

O Alasca foi parte do Império Russo até a primeira metade do século 19. Em 1867, os Estados Unidos compraram o território pagando cinco centavos de dólar por acre. De lá para cá, história conhecida: descobertas de ouro e petróleo, construção de estradas de ferro, pontes e portos, bases militares e um terremoto de triste memória, em 1964.

Quando Putin e Trump posavam para as câmeras, dias atrás, algo grave se passava nas prisões do Complexo Correcional de Anchorage: surto de tuberculose. O mesmo acontece no Centro de Detenção Eloy, no Arizona, no Centro Prisional de Denver, no Colorado, no Centro Prisional de Adelanto, na Califórnia.

Desde que passaram a receber comboios diários de imigrantes capturados pelo ICE (sigla em inglês de Imigração e Fiscalização Aduaneira), as condições sanitárias e de saúde colapsaram nestes lugares. A revista americana Prospect fala em imigrantes removidos às pressas para hospitais e de um óbito. E os testes positivos para a tuberculose se avolumam.

Em mais uma coincidência, o mesmo tipo de surto prisional marcou a Rússia no fim do regime soviético. O mal que se concentrava nas prisões da Sibéria extrapolou para outras partes, num tempo em que o encarceramento cresceu, tal como o alcoolismo e o desemprego, tudo agravado pelo súbito desmantelamento do sistema de saúde.

De 1991 a 2001, a incidência da tuberculose nas prisões russas atingiu a perigosa marca de 7.000 casos por 100 mil detentos, segundo a revista Scientific American. Putin poderia ter lembrado Trump do risco de empilhar gente, ainda que por tempo determinado.

Os Estados Unidos voltam ao passado com o projeto político-financeiro em curso na Casa Branca. Neste projeto está inserido o grande negócio da deportação em massa.

Trump pretende se livrar de 1 milhão de imigrantes em 2025, superando as marcas de Clinton, Obama e Biden. Para tanto, triplicou o orçamento do ICE, destinando US$ 45 bilhões ao financiamento de novos centros de detenção.

Há duas empresas, a GEO Group e a CoreCivic, que recebem boa parte da dinheirama, cujos CEOs têm dado entrevistas esfuziantes diante das "inéditas oportunidades de mercado".

Enquanto se apresenta como o fiador do fim das guerras e candidato imbatível ao Nobel da Paz –pena que terá de concorrer com outros nomes, do contrário, compraria o prêmio– Trump continua impondo a sua limpeza social, racial e étnica ao país que se constituiu pela força da imigração. A tuberculose nos cárceres americanos serve de metáfora para uma realidade ainda mais complexa.