quarta-feira, 27 de novembro de 2024

A presença de Machado de Assis em São Paulo, FSP

 Vicente Vilardaga

São Paulo

Machado de Assis é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Sua memória deveria ser sempre exaltada em todos os lugares do país. Chama a atenção que em São Paulo o artista não mereça um único monumento, nem um pequeno busto em uma praça importante.

O que existe de referência urbana ao escritor carioca na cidade é o nome de uma rua na Vila Mariana, na zona Sul, ponto final de uma linha de trólebus, a 408A-10, chamada de Machado de Assis. Ela parte da rua Cardoso de Almeida, em Perdizes. Fora isso há três escolas com seu nome e nada mais. Uma delas é escola privada, outra, Emei e a terceira, de educação básica.

Retrato de Machado de Assis quando ele tinha 57 anos: São Paulo ainda era uma província
Retrato de Machado de Assis quando ele tinha 57 anos: São Paulo ainda era uma província

É incrível como um personagem tão gigantesco possa ficar tão escondido e sem referências na paisagem paulistana. Poderia haver, por exemplo, uma estátua de Machado ao lado do Anhanguera, na entrada do parque Trianon, como símbolos da civilização e da barbárie. Também é defensável um monumento no estilo Borba Gato. Seja como for, o escritor, por sua grandiosidade, merece mais do que a cidade lhe dá.

Sua relação com São Paulo era nula. Machado que viveu entre 1839 e 1908, assistiu de longe o lugarejo interiorano se transformando em um local mais cosmopolita. Mas até a primeira década do século, quando ele ainda vivia, a cidade ainda não tinha dado seu salto industrial, urbanístico e muito menos artístico, que aconteceria nos anos 1920.

Uma das razões de Machado ser pouco homenageado em São Paulo está em sua profunda relação com o Rio de Janeiro e sua falta de interação com a cultura paulista. Ele estava pouco preocupado com o estado vizinho. Não era assunto de suas crônicas. Não é um cenário frequente em sua obra. Na verdade, aparece muito ocasionalmente. Valeria uma tese: "São Paulo na obra de Machado".

Para o escritor, cujo olhar partia da capital federal, São Paulo era mais um estado brasileiro e um centro emergente de progresso e modernidade. Pode-se dizer que ele via a cidade como uma província promissora, mas pouco interesse demonstrava por ela.

Ônibus Machadão
Ponto de partida da linha 408A-10, Machado de Assis, na esquina da rua Cardoso de Almeida

Interessava-lhe mais os acontecimentos na capital e os labirintos da alma do que eventuais lampejos econômicos e literários na província. Não há notícias de viagens suas para São Paulo e talvez a cidade estivesse completamente fora do seu radar. Fala-se de alguma correspondência com intelectuais paulistas. Se Machado fosse um abolicionista engajado, ele poderia ter trocado cartas hipotéticas com o defensor dos negros Luiz Gama. Seria um bom diálogo.

Machado deveria ser para o Brasil o que Giuseppe Garibaldi é para a Itália: um símbolo de unificação. Como na Itália, onde há alguma referência a Garibaldi em todas as cidades que se visite, o Brasil poderia fazer o mesmo com Machado. São Paulo precisa fazer mais reverência ao bruxo do Cosme Velho.


terça-feira, 26 de novembro de 2024

Edifício do antigo Pérola Byington dará lugar a novo hospital, FSP

 

São Paulo

O Estado é artífice do apagamento de memórias indesejadas, das lembranças de lutas que desafiam o senso comum e devem ser esquecidas. Um exemplo é o hospital Pérola Byington, que funcionou na avenida Brigadeiro Luis Antonio, no Centro, e, em 2022, mudou de endereço e de nome e foi convertido no Hospital da Mulher, na avenida Rio Branco.

O que parece só um movimento imobiliário, esconde uma grande carga simbólica. Apesar da aparência de continuidade, o Hospital da Mulher começa a ter uma história própria para contar, possivelmente sem conflitos políticos e com discursos escorregadios em relação ao aborto. Não há a memória do que aconteceu no velho Pérola Byington, cujo prédio começará a ser reformado e receberá um novo hospital.

Antigo hospital Pérola Byington
Antigo hospital Pérola Byington: palco de disputas entre grupos pró e antiaborto

O Pérola Byington era uma referência histórica em atendimento a mulheres e vítimas de violência sexual ou doméstica, além de ter uma reconhecida oncologia. Era também um dos lugares de discussão e imposição do aborto legal. Entre 2019 e 2021 foi palco de disputas entre grupos pró e antiaborto. Estava no centro de um debate que divide os brasileiros.

Agora foi para uma nova área, livre da herança política que havia acumulado no passado. Esvaziou-se toda uma história que estava marcada no antigo prédio, na velha localização. E tudo aconteceu muito rápido – a obra teve início de julho de 2019. Em questão de dois anos, o governo entregou o projeto pronto, com um edifício erguido na região conhecida como cracolândia.

O Hospital da Mulher foi construído por meio de uma Parceria Público-Privada (PPP) ao custo de R$ 245 milhões. O governo do estado delegou a construção do hospital ao grupo Construcap, que também é responsável pela manutenção predial e dos equipamentos.

A gestão é dividida entre a OSS (Organização Social de Saúde), o Seconci-SP (Serviço Social da Construção Civil do Estado de São Paulo) e a empresa Inova Saúde SPE S/A. É um modelo privado bem diferente do que funcionava antes. Quem manda agora é outra turma.

Fachada do Hospital da Mulher
Fachada do Hospital da Mulher, localizado na avenida Rio Branco, nos Campos Elíseos

É óbvio que mudar para uma sede com maior capacidade é uma vantagem. Os hospitais precisam se modernizar e o da Mulher pode receber 20% mais pessoas do que o Pérola Byington. Não faltam argumentos para uma mudança. Mas, nesse caso, havia também o efeito simbólico: dissipar uma memória inquietante relacionada ao aborto e aos direitos da mulher.

Para enfraquecer ainda mais os vínculos entre o velho e o novo hospital, a Cruzada Pró Infância, que detém os direitos sobre o nome da filantropa e ativista social Pérola Byington rejeitou seu uso na nova construção. Num ofício, a entidade afirmou que "após reuniões com familiares da professora, ficou definido que o nome Hospital Pérola Byington pertence à Cruzada Pró Infância e não poderá ser utilizado no novo espaço".

A Cruzada Pró Infância foi fundada em 1930 por Pérola Byington e por Maria Antonieta de Castro para defender gestantes e crianças e, em 1959, inaugurou o hospital na avenida Brigadeiro Luís Antônio. Há décadas, o imóvel era alugado para o governo do estado de São Paulo por R$ 380 mil mensais. Simbolicamente, o Pérola Byington acabou.


segunda-feira, 25 de novembro de 2024

Igrejas são algoritmos e filtram notícias sobre a trama golpista, Juliano Spyer, FSP

 A esquerda brasileira tem a aprender com Dana White. O chefão do UFC fez uma declaração na coletiva de imprensa após o UFC 309, em Nova York, evento em que o presidente eleito Donald Trump e Elon Musk foram os convidados de honra. Ele afirmou: "Eu venho tendo esta filosofia pelos últimos cinco anos: a mídia tradicional morreu. Não tem mais a influência que tinha antes".

E prossegue: "As duas coisas mais odiadas no mundo hoje são a mídia e os políticos. Ninguém confia neles e ninguém acredita neles. A verdadeira influência está com os jovens na internet, os chamados influenciadores. Então, venho construindo relações com essas pessoas nos últimos quatro ou cinco anos. E esta eleição foi vencida na internet".

Essa fala é central para analisarmos como os brasileiros vêm se informando sobre o que acontece no país.

Um exemplo recente é o anúncio feito pela Polícia Federal de que um grupo de militares, supostamente com a aprovação do ex-presidente Jair Bolsonaroplanejou o assassinato do presidente e vice-presidente eleitos em 2022, além do então presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes.

O campo democrático, especialmente à esquerda, parece celebrar o anúncio do plano e as prisões dos envolvidos, sob a ilusão de que o restante do país acompanha as notícias pelas mesmas fontes de informação. Esse é um erro. E é um erro ainda maior quando se trata dos evangélicos, que formaram a principal base de apoio eleitoral do bolsonarismo em 2018 e 2022.

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Embora a análise de White sobre influenciadores da internet seja relevante, ela não explica completamente a realidade brasileira. Isso porque desconsidera o ecossistema comunicacional que se desenvolveu em torno de grandes denominações evangélicas.

Igrejas atuam como algoritmos. O convívio e as relações sociais filtram de maneira implícita ou explícita as informações que circulam em ambientes compartilhados, como os próprios templos e também os grupos de WhatsApp.

E o que chegou aos grupos de WhatsApp das igrejas e de pastores sobre a denúncia de planos para anular os resultados da última eleição? Com alguma frequência, a mesma mensagem dita por Dana White: mídia e políticos estão articulados para mentir sobre o que acontece no país.

Todo o conteúdo que eu recebi de interlocutores é atual e associado às notícias sobre o G20. Inclui material em vídeo sobre a repercussão internacional da fala deselegante da primeira-dama Janja sobre Elon Musk, críticas à "hipocrisia" do presidente Lula pela alta de preços no país, denúncias de casos de "terrorismo de esquerda" desconsiderados pela mídia, imagens de protestos com o rosto dos presos do 8 de Janeiro e a versão da família Bolsonaro sobre o que chamam de perseguição ao ex-capitão.

Fala de Janja sobre Elon Musk no site da Reuters
Fala de Janja sobre Elon Musk no site da Reuters - Reprodução

Dana White tem um lado nesse debate, mas sua análise é —pode-se dizer— profética. Veio da internet o empurrão final que levou Trump à Casa Branca. O que foi testado e funcionou lá está sendo aplicado e será aperfeiçoado para a eleição brasileira de 2026.