quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Onde mora o perigo, Maria Hermínia Tavares, FSP

 

polarização política inquieta todos quantos aspiram a uma democracia sólida e estável para o país. A lembrança da invasão da Praça do Três Poderes pelas hordas bolsonaristas, a completar um ano na segunda-feira que vem, serve de alerta para os riscos de novas sortidas da direita radical. Contorná-los requer clareza sobre os perigos da divisão dos brasileiros entre "nós" e "eles".

Recomendo, por oportuno antes de tudo, o último episódio de 2023 do podcast "Fora da política não há salvação", no qual o cientista político Claudio Couto (FGV-SP) entrevista seu colega Antonio Lavareda (Ipesp), reconhecido estudioso da opinião pública. Retomo aqui algo daquela proveitosa conversa.

A polarização política não constitui propriamente uma novidade. Em certa medida, é induzida pela eleição em dois turnos para os cargos executivos. Além de reduzir a duas as opções dos eleitores na segunda volta, esse sistema pode induzi-los, já na primeira, a afunilar suas escolhas nos candidatos mais bem colocados.

Por outro lado, como mostraram os cientistas políticos Cesar Zucco e David Samuels, a oposição entre petismo e antipetismo vem estruturando a disputa presidencial há muito tempo. E, pelos menos desde 2006, agrupa os eleitores em dois campos nítidos e estáveis.

A novidade em 2018 foi a ascensão, no polo antipetista, de uma liderança facistoide que tomou o lugar até então ocupado pelo PSDB, sigla comprometida com a democracia. Essa revolução e tanto no condomínio das direitas ampliou a distância entre os dois polos e fez mais áspera a disputa entre eles.

Ainda é cedo, porém, para dizer até que ponto a extrema-direita bolsonarista está alojada nos corações dos eleitores e quão sólida é sua liderança no campo do antipetismo.

Recente pesquisa da Genial/Quaest traz indícios contraditórios sobre o grau de polarização na sociedade. De um lado, só 6 em cada 100 eleitores de Bolsonaro —sete entre os lulistas— se dizem arrependidos de seus votos. Além do mais, o que uns e outros fizeram diante das urnas se correlaciona com sua avaliação do novo governo.

De outro lado, 15% dos que sufragaram o ex-capitão erguem o polegar para o desempenho de seu adversário vitorioso; índice pouco menor acredita que o governo está no rumo certo e 25% daqueles se dizem otimistas quanto ao desempenho da economia em 2024. Muito cedo, portanto, para falar em identidades políticas calcificadas.

De todo modo, sendo a polarização obra de lideranças, sua sobrevida e intensidade dependerão muito do incerto futuro de Bolsonaro e da disposição da direita de buscar rotas mais civilizadas.

Sérgio Rodrigues - Gratidão é o sabichonismo da vez, FSP

 Virada de ano é a época mais propícia para esse tipo de balanço: foi-se 2023, chegou 2024, e "gratidão" continua avançando em sua guerra expansionista para tentar desalojar "obrigado" do posto de fórmula de agradecimento preferida em nossa língua.

Sim: na hora de agradecer à tia pelo presente do amigo oculto ou ao cosmo por ter sobrevivido a mais um ano neste planeta que não sabe desligar o próprio forno, tudo indica que um número inédito de falantes de português optou por "gratidão" em vez de "obrigado".

–Que 2024 lhe traga saúde, alegria e grana!

–Gratidão!

Imagem mostra em primeiro plano as mãos fechadas com a palavra gratidão, com cada dedo tatuado com uma letra da palavra
A atriz Luana Piovani mostra a palavra "gratidão" tatuada nos dedos - @luapio no Instagram

Trata-se de um direito desses falantes, é claro. Ainda que eles trocassem "obrigado" por uma palavra mais esdrúxula como "alcachofra", "eructação" ou "fotossíntese", como negar que somos todos livres para decidir aquilo que nos sai da boca? Naturalmente, essas coisas têm consequências.

Uma delas, no caso da onda "gratidão", é o possível pouso da palavra em ouvidos que tenderão a interpretá-la como sinal de uma mente rendida ao sabichonismo, lenga-lenga que passa por bom senso e até sabedoria em nosso tempo de redes sociais.

Sempre foi possível expressar gratidão, lógico, mas costumava ser preciso pagar algum respeito sintático a esse substantivo velho de séculos, derivado do latim "gratitudinis". Era bem raro ver o termo assim, soltinho na vida, como se interjeição fosse.

Até aí tudo bem. Línguas vivas, organismos irrequietos, se mexem sem parar e estão sujeitas a todo tipo de modismo. Ocorre que chamar a gratidão interjecional de modismo não está errado, mas passa longe de esgotar o assunto.

Anos atrás, quando comecei a escrever sobre a língua na imprensa, ainda não se usava gratidão desse jeito –ou se usava em bolhas tão restritas que pouca gente tinha acordado para a novidade. Sei disso porque escrevi repetidamente sobre "obrigado", mas a conversa na época era outra.

Discutia-se a questão do gênero: estava certo que cada vez mais mulheres optassem por dizer "obrigado", no masculino mesmo? O tema tinha interesse do ponto de vista histórico. Sendo adjetivo em sua origem, é óbvio que, como manda a tradição, a palavra deveria ser flexionada: obrigada, obrigados.

No entanto, embora pouco reconhecido assim pelos lexicógrafos, na prática aquele obrigado já tinha se tornado fazia tempo uma fórmula fixa, um vocábulo entendido cada vez mais como interjeição. Nesse sentido era natural que permanecesse invariável.

Se já estava quase perdida na memória da língua sua origem na expressão "fico-lhe obrigado", ou seja, "passo a ser seu devedor", por que insistir que obrigado fosse tratado como adjetivo?

Pois foi essa memória desbotada que o uso emergente tratou de reavivar para empregar como acusação a "obrigado". Como assim, devedor? Que obrigação contratual e materialista é essa? O horror!

Talvez "gratidão" seja só um daqueles vírus linguísticos que contagiam multidões por alguns janeiros antes de voltarem para o limbo, mas é também um bom exemplo de como funciona a lógica sabichona.

Tão raso quanto cheio de si, tão arbitrário na condenação de usos consagrados quanto convencido da própria virtude, o sabichonismo que se volta contra o educadíssimo "obrigado" é o mesmo que já tentou —com sucesso limitado, mas ainda lamentável– criminalizar o "risco de vida".

E se alguém acha que faltou falar de "gratiluz", peço desculpas. Este é um jornal de família.

O pior dos três mundos, Ruy Castro FSP

 

Por acaso em Buenos Aires na semana das eleições na Argentina, tive vários déjà-vus diante da vitória de Javier Milei. Por mais que seu adversário Sergio Massa fosse um desastre, era óbvio que, ao votar em Milei, os argentinos não sabiam o que estavam fazendo. Nós sabemos. Do seu tipo de político, já tivemos no Brasil três devastadoras amostras: Jânio Quadros (1961), Fernando Collor (1990) e Jair Bolsonaro (2019).

Assim como estes, Milei se promove como um antipolítico, caído do céu para fazer uma faxina. Cada qual com seu gimmick: Jânio tinha uma vassoura como símbolo, Collor disparava contra os "marajás" e Bolsonaro se fazia de vestal. Milei se exibe com uma motosserra. E cada qual tinha um estilo da comunicação: Janio falava pelos "bilhetinhos", Collor, pela televisão, e Bolsonaro, pelas redes sociais. Talvez Milei use seu falecido cachorro como boneco de ventríloquo.

Assim como os três, que prometiam mudar tudo, Milei vem aí com um projeto de lei com 351 páginas e 664 artigos. Os três eram liberais ou se faziam de. Milei é ultra e quer privatizar tudo. Mas, se acabar com o Estado, o que lhe restará para administrar?

A diferença é que Milei é economista e se diz entendedor de finanças. Jânio, Collor e Bolsonaro só entendiam das próprias finanças. Jânio, Collor e Bolsonaro começaram dando uma banana para os políticos com quem conviviam. Milei também não quer saber dessa gente e, assim como os nossos, vai tentar governar por decreto. Como suas medidas serão rejeitadas pelo Congresso, apelará para plebiscitos marotos.

E todos visaram ao autoritarismo, mas perderam. Jânio blefou com a renúncia e se deu mal, Collor foi impichado e Bolsonaro só não caiu porque tinha os PGRs na coleira. Há quem dê um ano para Milei.

Jânio, Collor e Bolsonaro, um de cada vez, eram o pior dos mundos. Com Milei, a Argentina pode ter o pior dos três mundos de uma vez.

Javier Milei segura motosserra durante campanha eleitoral para a Presidência da Argentina, em outubro de 2023
Javier Milei segura motosserra durante campanha eleitoral para a Presidência da Argentina, em outubro de 2023 - 16.out.2023/Reuters