Virada de ano é a época mais propícia para esse tipo de balanço: foi-se 2023, chegou 2024, e "gratidão" continua avançando em sua guerra expansionista para tentar desalojar "obrigado" do posto de fórmula de agradecimento preferida em nossa língua.
Sim: na hora de agradecer à tia pelo presente do amigo oculto ou ao cosmo por ter sobrevivido a mais um ano neste planeta que não sabe desligar o próprio forno, tudo indica que um número inédito de falantes de português optou por "gratidão" em vez de "obrigado".
–Que 2024 lhe traga saúde, alegria e grana!
–Gratidão!
Trata-se de um direito desses falantes, é claro. Ainda que eles trocassem "obrigado" por uma palavra mais esdrúxula como "alcachofra", "eructação" ou "fotossíntese", como negar que somos todos livres para decidir aquilo que nos sai da boca? Naturalmente, essas coisas têm consequências.
Uma delas, no caso da onda "gratidão", é o possível pouso da palavra em ouvidos que tenderão a interpretá-la como sinal de uma mente rendida ao sabichonismo, lenga-lenga que passa por bom senso e até sabedoria em nosso tempo de redes sociais.
Sempre foi possível expressar gratidão, lógico, mas costumava ser preciso pagar algum respeito sintático a esse substantivo velho de séculos, derivado do latim "gratitudinis". Era bem raro ver o termo assim, soltinho na vida, como se interjeição fosse.
Até aí tudo bem. Línguas vivas, organismos irrequietos, se mexem sem parar e estão sujeitas a todo tipo de modismo. Ocorre que chamar a gratidão interjecional de modismo não está errado, mas passa longe de esgotar o assunto.
Anos atrás, quando comecei a escrever sobre a língua na imprensa, ainda não se usava gratidão desse jeito –ou se usava em bolhas tão restritas que pouca gente tinha acordado para a novidade. Sei disso porque escrevi repetidamente sobre "obrigado", mas a conversa na época era outra.
Discutia-se a questão do gênero: estava certo que cada vez mais mulheres optassem por dizer "obrigado", no masculino mesmo? O tema tinha interesse do ponto de vista histórico. Sendo adjetivo em sua origem, é óbvio que, como manda a tradição, a palavra deveria ser flexionada: obrigada, obrigados.
No entanto, embora pouco reconhecido assim pelos lexicógrafos, na prática aquele obrigado já tinha se tornado fazia tempo uma fórmula fixa, um vocábulo entendido cada vez mais como interjeição. Nesse sentido era natural que permanecesse invariável.
Se já estava quase perdida na memória da língua sua origem na expressão "fico-lhe obrigado", ou seja, "passo a ser seu devedor", por que insistir que obrigado fosse tratado como adjetivo?
Pois foi essa memória desbotada que o uso emergente tratou de reavivar para empregar como acusação a "obrigado". Como assim, devedor? Que obrigação contratual e materialista é essa? O horror!
Talvez "gratidão" seja só um daqueles vírus linguísticos que contagiam multidões por alguns janeiros antes de voltarem para o limbo, mas é também um bom exemplo de como funciona a lógica sabichona.
Tão raso quanto cheio de si, tão arbitrário na condenação de usos consagrados quanto convencido da própria virtude, o sabichonismo que se volta contra o educadíssimo "obrigado" é o mesmo que já tentou —com sucesso limitado, mas ainda lamentável– criminalizar o "risco de vida".
E se alguém acha que faltou falar de "gratiluz", peço desculpas. Este é um jornal de família.
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