"Pai, quando vamos ter saneamento?" "Nunca, minha filha. É um setor estratégico. A elite disse que é mais importante manter o setor na mão do Estado do que se preocupar com a qualidade dos serviços."
Essa pode parecer uma falsa dicotomia, mas não é. Não se deve usar a desculpa de que um setor é estratégico para subprover um serviço básico à sociedade. Isso vale para saneamento, energia elétrica, infraestrutura, telefonia, medicamentos e muitos outros.
A questão é simples: o que importa, em um setor dito estratégico, é normalmente uma garantia de suprimento em momentos de crise ou resiliência a desastres. Isso pode ser feito com empresa pública, privada ou intergaláctica.
Protesto na Assembleia de SP contra a privatização da Sabesp - Ronny Santos/Folhapress
No debate sobre a privatização da Sabesp, muito pouco se ouviu sobre quem realmente importa: os mais pobres. São Paulo tem 600 mil vivendo em meio ao esgoto e sem saneamento. Menos de 70% do esgoto do estado é tratado e 1,6 milhão de pessoas não tinham acesso ao sistema de rede de água.
Uma empresa visar o lucro não é obstáculo para a provisão de serviços públicos. Setores regulados são aqueles nos quais o Estado determina as regras que as empresas devem seguir, definindo as contrapartidas e até limitando as taxas de retorno que as firmas podem ter.
Se o Estado determinar que investimento em universalização é a contrapartida, as empresas vão buscar isso para ganhar dinheiro. Se dependesse do pessoal do "setor estratégico", até hoje teríamos que colocar linhas de telefone como patrimônio no imposto de renda.
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A maior promessa da privatização da Sabesp é antecipar a universalização do acesso a água e esgoto de 2033 para 2029. Não há nenhuma garantia que isso vá acontecer, pois isso depende de um bom desenho de contrato.
Empresas que visam lucro vão sempre tentar limitar investimentos pouco rentáveis enquanto maximizam a receita das áreas mais nobres. Mas, de novo, é por isso que existem agências regulatórias.
O problema na desestatização da Sabesp é a promessa de que os investimentos vão aumentar e a tarifa será mais barata. Tal cenário é muito pouco provável, pois os investimentos serão feitos em áreas menos rentáveis. A não ser que haja gigantescos ganhos de eficiência com a diminuição da participação acionária do estado, algo discutível.
Manifestantes contrários à privatização da Sabesp entraram em confronto com a Polícia Militar no plenário da Assembleia Legislativa, que votRonny Santos/Folhapress
Se pegarmos o exemplo da universalização do sistema de telefonia, as privatizações levaram a imensos investimentos na ampliação e na melhoria do sistema, mas veio com aumento nas tarifas. Afinal, como uma empresa vai ser viável se tem de investir mais em áreas sem economias de escala?
Além disso, água e esgoto são serviços subsidiados no mundo inteiro. Se o estado está prometendo diminuição de tarifa e aumento de investimentos, é porque deve estar, indiretamente, subsidiando mais a empresa.
A comparação do presidente da Sabesp com as privatizações da Vale e da Embraer, que se tornaram empresas globais, não faz muito sentido. A Sabesp é um monopólio natural em um mercado regulado. Para investir globalmente, primeiro deve universalizar os serviços localmente. E isso está muito longe de acontecer.
São pouquíssimos os setores realmente estratégicos. E, mesmo neles, o que importa é prover a sociedade com serviços de qualidade. Isso não pode ser desculpa para omissão.
A Sabesp estar nas mãos do setor público não é algo a ser comemorado ou desmerecido. O que importa é: vai chegar saneamento aos mais pobres? O resto é futrica.
THE NEW YORK TIMES - No solo rochoso de Lorraine, uma antiga região de mineração de carvão perto da fronteira entre a França e a Alemanha, os cientistas guiaram uma pequena sonda em um dia recente por um poço de 800 metros na crosta terrestre. A espuma no lençol freático era uma descoberta empolgante: bolhas do tamanho de champanhe que sinalizavam um esconderijo potencialmente gigantesco do chamado hidrogênio branco, um dos combustíveis de queima mais limpa da natureza.
“O hidrogênio é mágico — quando você o queima, libera água, portanto não há emissões de carbono para aquecer o planeta”, disse um dos cientistas, Jacques Pironon, pesquisador sênior e professor da Universidade de Lorraine. “Achamos que descobrimos um dos maiores depósitos de hidrogênio natural em todo o mundo.”
A descoberta de Pironon e de outro cientista, Philippe de Donato, ambos membros do respeitado Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, causou sensação na França, onde o governo prometeu se tornar um líder europeu em hidrogênio limpo. Ainda há muitas dúvidas sobre a descoberta, incluindo o tamanho exato e a melhor forma de extrair o gás. No entanto, ela se somou a um rastro de pistas em outras partes do mundo de que um Santo Graal de energia limpa pode estar à disposição na terra.
Governos e empresas de todo o mundo têm apostado no hidrogênio como uma pedra angular na luta contra as mudanças climáticas. Um setor multibilionário, apoiado por bilhões de dólares em subsídios e investimentos privados, surgiu para apoiar a fabricação de hidrogênio, que, em teoria, poderia substituir os combustíveis fósseis para alimentar fábricas, caminhões, navios e aviões, potencialmente removendo cerca de metade de todas as emissões de aquecimento do planeta.
Local de perfuração em depósito de hidrogênio, na França; descoberta do chamado hidrogênio branco somou-se a um rastro de pistas em outras partes do mundo de que um Santo Graal de energia limpa pode estar na Terra para ser explorado Foto: Violette Franchi/The New York Times
Mas a produção de hidrogênio comercial envolve a divisão da água em hidrogênio e oxigênio, um esforço que requer energia. Se forem usados combustíveis fósseis, o processo resulta em emissões de gases de efeito estufa, e o resultado é chamado de hidrogênio cinza. Aproveitar a eletricidade renovável de turbinas eólicas e painéis solares para produzir o que é chamado de hidrogênio verde é mais limpo, porém, mais caro.
O hidrogênio natural, também chamado de hidrogênio branco devido à sua pureza, pode ser um divisor de águas, dizem os cientistas, porque é uma fonte potencial de energia limpa gerada continuamente pela Terra. Os reservatórios de hidrogênio se formam quando a água aquecida encontra rochas ricas em ferro. Segundo o U.S. Geological Survey (Serviço Geológico dos EUA), apenas uma pequena fração desses depósitos poderia fornecer energia limpa suficiente para centenas de anos.
“Se eles verificarem essa descoberta, ela será muito significativa e terá um grande impacto na sociedade”, disse Geoffrey Ellis, geoquímico do U.S. Geological Survey e especialista mundial em hidrogênio, sobre a descoberta francesa. “Há muitos outros lugares no mundo onde descobertas semelhantes também podem ser feitas, e as pessoas estão analisando isso porque realmente pode ser impactante.”
Em Lorraine, os cientistas disseram que seus testes sugeriram que de 46 milhões a 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio natural poderiam estar à espreita sob as minas de carvão, que foram abandonadas Foto: Violette Franchi/The New York Times
Em Lorraine, os cientistas disseram que seus testes sugeriram que de 46 milhões a 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio natural poderiam estar à espreita sob as minas de carvão, que foram abandonadas na década de 1970 quando a França passou a usar energia nuclear. Em comparação, cerca de 70 milhões de toneladas métricas de hidrogênio são produzidas comercialmente no mundo todo a cada ano.
Reservas naturais de hidrogênio foram detectadas recentemente em partes dos Estados Unidos, Austrália, África, Rússia e também em outros lugares da Europa. Não é incomum encontrar hidrogênio durante a perfuração de gás ou petróleo, mas, no passado, as empresas ignoravam essas descobertas devido à baixa demanda.
Os pesquisadores não davam muita credibilidade ao hidrogênio branco até uma descoberta casual em Bourakébougou, um pequeno vilarejo em Mali, em 1987, quando um trabalhador acidentalmente ateou fogo em um poço de água ao acender um cigarro sobre ele. Descobriu-se que o poço continha hidrogênio natural, que agora é usado para abastecer lojas e residências depois que um empresário local contratou uma empresa de petróleo para extrair o gás.
Pesquisadores geológicos, a partir da esquerda: Philippe De Donato, Aurélien Randi e Jacques Pironon, no local de perfuração do depósito de hidrogênio na França Foto: Violette Franchi/The New York Times
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“As pessoas não procuravam hidrogênio natural há anos e anos porque todos estavam concentrados na perfuração de petróleo e gás”, disse Julien Moulin, presidente da Française De l’Énergie, uma empresa de energia limpa que está trabalhando com Pironon e de Donato para testar e desenvolver projetos de hidrogênio branco. “Mas parece que estamos no início de uma nova dinâmica”, disse ele.
O principal negócio da Française De l’Énergie tem sido a captura de gás metano de veios de carvão e sua conversão em energia limpa para as indústrias da região. Com a descoberta do hidrogênio, a empresa intensificará seus esforços para explorá-lo e extraí-lo, disse o Sr. Moulin.
“Você já tem o bolo — agora a questão é como comê-lo?”, disse ele. “É preciso criar as ferramentas para desenvolver esse recurso, e esse será o trabalho dos próximos anos.”
Os esforços em Lorraine refletem um entusiasmo mais amplo que se espalha pelo setor de combustíveis limpos em relação ao hidrogênio natural. A crescente compreensão de que a Terra é sua própria fábrica de hidrogênio desencadeou uma mini-corrida do ouro entre pesquisadores e empresas de energia iniciantes ansiosas por fazer uma descoberta.
Bairro em Folschviller, antiga cidade de mineração de carvão na França Foto: Violette Franchi/The New York Times
Na Austrália, a Gold Hydrogen, uma empresa de energia independente, está explorando o hidrogênio natural perto de Adelaide após descobrir documentos históricos de dois poços de petróleo perfurados na década de 1930 que mostravam grandes quantidades de hidrogênio de alta pureza na área.
Bill Gates está entre os investidores dos Estados Unidos que financiaram a Koloma, uma empresa do Colorado que busca hidrogênio em uma enorme fenda geológica no Meio-Oeste. Na Europa, pequenas empresas de energia da Espanha, Suíça, países nórdicos e outros estão vasculhando a crosta terrestre.
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Ainda não se sabe se o hidrogênio branco está à altura do que se espera. Até o momento, as descobertas variam de potencialmente enormes que podem levar anos para serem verificadas, como a de Lorraine, a acumulações pequenas ou extremamente profundas que podem não ser economicamente viáveis, disse Ellis. Ainda há dúvidas sobre se essa é uma fonte ilimitada de combustível limpo. As grandes empresas petrolíferas, como a TotalEnergies da França, não se lançaram ao investimento e parecem estar esperando para ver como as coisas se desenvolvem.
Além disso, há o custo. Embora os Estados Unidos e a Europa tenham reservado bilhões para subsidiar o desenvolvimento do hidrogênio verde usando energia renovável, nada desse dinheiro é destinado a incentivar a produção de hidrogênio branco.
E os produtores de hidrogênio branco precisam ficar de olho no preço final do gás. Embora o hidrogênio verde custe cerca de US$ 5 por quilograma para ser produzido — mais do que o dobro do hidrogênio cinza — o Departamento de Energia dos EUA está patrocinando um programa para que o preço do hidrogênio verde chegue a US$ 1 por quilograma em uma década.
Na Espanha, uma start-up chamada Helios Aragón está desenvolvendo um projeto de produção de hidrogênio natural nos Pirineus que, segundo ela, será capaz de igualar ou superar esse preço.
“A pergunta número 1 é qual será o custo”, disse Marco Alverà, executivo-chefe da Tree Energy Solutions, ou TES, uma empresa que planeja produzir e importar hidrogênio limpo para a Europa. Para o hidrogênio natural ser competitivo, “depende de muitos fatores, incluindo a pressão a que o gás está submetido, a temperatura e o tipo de rocha que é perfurada”, disse ele.
Local de perfuração, onde os testes sugerem que até 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio podem estar no subsolo, na França Foto: Violette Franchi/The New York Times
Nesse meio tempo, a Europa está construindo uma grande rede de dutos que poderiam fornecer hidrogênio manufaturado para fábricas e locais de combustível. A esperança é que o hidrogênio branco possa um dia fluir por eles.
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Se tudo correr conforme o planejado em Lorraine, novas perfurações começarão no próximo ano com uma sonda avançada que coletará amostras de gás de até 2,9 quilômetros abaixo do solo — mais profundo do que o comprimento da ponte Golden Gate — para testar a magnitude do tesouro de hidrogênio, com o objetivo de extrair o hidrogênio natural até 2027 ou 2028.
Pironon e de Donato têm grandes esperanças. Quando começaram a procurar gás metano deixado pelas minas de carvão, descobriram hidrogênio à medida que se aprofundavam. A meia milha de profundidade, eles encontraram concentrações de hidrogênio mais altas do que as relatadas em qualquer outro lugar do mundo, disse o Sr. de Donato.
“Podemos ter uma verdadeira fábrica de hidrogênio escondida sob nossos pés”, disse ele. “É um motivo de grande entusiasmo.”
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A cada vez que se indica ou se pretende indicar um ministro do Supremo Tribunal Federal, repete-se o monótono ritual da opinião pública de avaliar se os eventuais candidatos preenchem o critério de notório saber estabelecido desde a Constituição de 1891. Sim, embora as duas constituições tenham quase um século de distância, o requisito foi repetido sempre nos mesmos termos. Há um século era mais fácil verificar sua presença ou ausência. O Brasil tinha 14 milhões de habitantes. Os bacharéis em direito saíam de apenas duas faculdades, a de São Paulo e do Recife. Todo mundo se conhecia. O positivismo jurídico da época supunha uma distinção mais clara entre direito e política como exercício de atividades diferentes, aquele vinculado à lei, este discricionário. Mas eram as mesmas pessoas que exerciam o direito e o poder. Quase todos os políticos eram bacharéis.
Os ministros do STF indicados pelo presidente da República saíam da magistratura, das grandes bancas de advocacia, do Ministério Público, dos docentes das faculdades, mas também da política. Foram ministros do STF da Primeira República ex-senadores como Manuel Murtinho (GO), João Barbalho (PE) e Amaro Cavalcanti (RN); ex-governadores como Anfilófio de Carvalho (AL) e Alberto Torres (RJ); e ex-ministros da Justiça, como também haviam sido Amaro Cavalcanti e Alberto Torres, mas também Epitácio Pessoa. Este último, depois que deixou o Supremo, virou senador (PB), e depois presidente da República. Havia também professores de direito puro sangue, como Pedro Lessa (SP), e outros, que cumulavam cargos de deputados, como Herculano de Freitas (SP). Ter carreira política não era exceção: era regra. Não impedia que os nomeados fossem considerados como dotados de notório saber. Exceto quando não eram bacharéis em direito: médicos como Barata Ribeiro, ou militares. Casos únicos na história em que o Senado recusou os indicados. Houve também o caso de Pedro Mibieli, que não recebeu o voto de Rui Barbosa, senador, por não preencher o requisito de reputação ilibada.
Hoje, tempo em que a comunidade jurídica aumentou barbaramente, é bem mais difícil saber o que seja notório saber jurídico. Há quem entenda que a notoriedade dependa de graus acadêmicos, ou de destaque na profissão. Na prática, o Senado adotou desde sempre um critério governista: qualquer bacharel indicado pelo presidente possui presunção de notório. Para tanto contribui também o lobby dos advogados e magistrados sem doutorado, o que não é mau, porque reduz a quantidade de teses plagiadas e compradas, que abundam nessa seara. Ultimamente, acrescentou uma exigência: que seja garantista, ou seja, que garanta vida boa para os congressistas enroscados com a Justiça.
Não é de se esperar ingenuamente que o número de indicações de juristas com experiência política se reduza hoje, quando o STF se tornou o tribunal mais poderoso do mundo.
Para tanto contribuiu tanto a fé que nele foi depositada pelos constituintes de 1987-1988 quanto o estranho desenho constitucional que lhe conferiram, levando-o a acumular três funções diferentes: funções jurisdicionais de corte constitucional europeia (controle concentrado de constitucionalidade), de suprema corte americana (controle incidental de constitucionalidade e corte recursal de última instância) e de tribunal penal de toda a aristocracia política do país. Na prática ele exerce ainda uma quarta função, via Conselho Nacional de Justiça, que é a de servir de corregedoria da magistratura do país inteiro. Tribunal de poderes imensos, que bancou na década passada uma revolução judiciarista que dizimou a política brasileira a título de livrá-la da corrupção, concorrendo para provocar uma crise de legitimidade institucional que ajudou a eleger Bolsonaro como presidente. Tribunal que, na sequência, ameaçado de ser devorado pelas feras que ajudou a soltar, desfez tudo o que fizera para resistir ao “golpismo nosso de cada dia” do populismo reacionário e teve seu edifício invadido por uma horda de fascistóides golpistas.
Por trás das queixas por nomeações técnicas para o STF, está a fantasia de que seria possível perpetuar o perfil das nomeações menos politicamente interessadas feitas pelo próprio PT antes da “revolução judiciarista” que fez do tribunal o protagonista da vida brasileira com ministros de perfil liberal democrata ou republicano como Joaquim Barbosa, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia. Mesma lógica que orientava a obediência às listas tríplices oferecidas pela associação de procuradores federais para a escolha do procurador-geral da República. Essas nomeações só eram possíveis na medida em que os presidentes da república e seus assessores jurídicos não tinham percepção da centralidade adquirida pela Corte e pelo MPF, apostavam em perfis de professores progressistas como forma de aperfeiçoamento institucional. Foi a única época do STF e da PGR em que isso aconteceu.
Agora, porém, esse parêntese histórico desapareceu. A experiência dos últimos dez anos demonstrou a absoluta centralidade política da Corte para o funcionamento e equilíbrio sistêmico. Ao mesmo tempo, emergiu um problema magno e inédito, que consiste em como enquadrar o STF em um novo modelo de governabilidade. Modelos de governabilidade podem ser definidos como conjuntos de convenções e padrões de comportamento institucional capaz de conferir previsibilidade e estabilidade ao sistema político, dentro dos parâmetros oferecidos pela Constituição. Quando um regime de governabilidade entra em crise, a instabilidade confere a tônica da política, como se percebe do Brasil da república de 1946 e nos últimos dez anos. Na história brasileira, houve três famosos modelos de governabilidade: o regressista ou saquarema, que organizou o Brasil independente no império; a política dos governadores, depois complementada pela do café com leite, que estabilizou a república velha; e o presidencialismo de coalizão que deu uma rotina à república de 1988. Nenhum deles incluía o STF, que não tinha relevância política. Ao contrário: a Corte tinha um histórico de não ter decisões acatadas quando “desobedecia” ao governo, com direito a aposentadoria compulsória dos ministros decretada pelas ditaduras.
Lula se vê às voltas com esse desafio duplo. Não só o parlamentarismo bastardo e orçamentívero do Congresso inviabiliza um presidencialismo de coalizão nos antigos termos como nenhum eventual modelo novo poderá ter êxito sem inserir o hoje poderoso STF na equação.
Aqui não há espaço para uma restauração, ou seja, os estilos dos governos passados de Lula I e II não servem para a conduta do presente. Tem sido a necessidade prática de buscar alternativas a um congresso hostil ou indócil que tem levado Lula a tentar costurar com os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes uma espécie de judiciarismo de coalizão, que lhe dê desta ponta da Praça dos Três Poderes um apoio e uma boa vontade que lhe têm faltado na outra. Daí o pacote que inclui a indicação de Flávio Dino para o STF, nome de relevância política, e a de Paulo Gonet para a PGR, abençoada pelos dois juízes protagonistas em luta pela preservação das prerrogativas do STF contra as investidas daquele mesmo congresso. O perfil político de Dino, ex-governador, ex-senador e ex-magistrado, ao contrário do que diz muita gente desavisada ou ignorante, se enquadra aliás nas melhores tradições de notório saber jurídico do STF. Certamente muito mais do que o de Cristiano Zanin, cuja indicação parece se ter dado também como fruto do capricho de humilhar Sergio Moro.
Nesse contexto crítico de busca pelo Executivo de uma governabilidade perdida, os liberais democratas e a esquerda identitária, feminista e negra, podem chiar à vontade. Se Lula tiver um candidato negro ou uma candidata mulher de sua alta confiança e com cacife para se encaixar no jogo do judiciarismo de coalizão, tanto melhor. Se não tiver, paciência. Terão de se satisfazer com cargos menores em ministérios e na defensoria pública. Questão de prioridade. O tempo das nomeações inocentes terminou.
Cientista político, editor da revista Insight Inteligência e professor do IESP-UERJ