terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Entenda o que é cassiterita, ponto central de operação da PF que chegou a Alexandre Pires, FSP

 

SÃO PAULO

Uma operação da PF (Polícia Federal) que investiga mineração na terra indígena yanomami envolveu o nome do cantor Alexandre Pires, cujo apartamento em Itapema (SC) foi alvo de um mandado de busca e apreensão. Não se trata, porém, de ouro, como vem à mente quando se fala em mineração em áreas protegidas, mas, sim, de cassiterita.

A cassiterita é um minério central para produção de estanho. Interessam-se pela cassiterita as indústrias siderúrgica, de soldas e química, objetos de pewter e bronze.

Segundo Luiz Jardim Wanderley, pesquisador do departamento de geografia da UFF (Universidade Federal Fluminense) e membro do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, o Brasil possui a quinta maior reserva de cassiterita do mundo.

Policias federais em caminhão com carga de cassiterita ilegal apreendida
Cassiterita ilegal é apreendida pela Polícia Federal em Boa Vista (RR) - Polícia Federal/Divulgação

No Brasil, segundo a ANM (Agência Nacional de Mineração), ficam na amazônia as mais importantes concentrações de cassiterita. Rondônia é tipo como um dos pontos principais do minério no país. Dados da ANM mostram que o estado lidera em valor da produção mineral.

Assim como para extração de ouro, os garimpos de cassiterita também trazem impactos ambientais, segundo Wanderley. "Usa grandes máquinas, altera a dinâmica dos rios, produz desmatamento. Mas não usa mercúrio", afirma o pesquisador. "Ao mesmo tempo os impactos sociais de ambos os garimpos [ouro e cassiterita] são similares."

Wanderley aponta que os garimpeiros de cassiterita também fazem a extração com bombas e mangueiras nos leitos dos rios.

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O pesquisador diz que não se trata de um metal raro, com elevado valor de mercado. Dessa forma, o volume de produção é importante.

Segundo dados da ANM, os valores da produção mineral relacionados a estanho —e, consequentemente, à cassiterita— tiveram alta desde 2020, em relação aos anos anteriores.

O preço por tonelada de casserita cresceu consideravelmente durante a pandemia e, no momento, ainda está acima de anos anteriores. Wanderley aponta que, apesar de estar acima dos valores observados no começo do século, o preço está perto do que foi visto no período próximo a 2012.

A operação da PF que liga o cantor Alexandre Pires ao garimpo de cassiterita recebeu o nome de Disco de Ouro. Segundo a PF, o cantor teria recebido R$ 1 milhão de uma mineradora investigada. Um empresário musical seria o responsável pelo núcleo financeiro das atividades ilegais. A polícia buscou no imóvel do cantor documentos relacionados a possíveis pagamentos da mineradora.

A Opus Entretenimento, que cuida da carreira do carreira do cantor, disse que "desconhece qualquer atividade ilegal supostamente relacionada a colaboradores e parceiros da empresa". A defesa de Pires informou que ele "não tem e nunca teve qualquer envolvimento com garimpo ou extração de minério, muito menos em área indígena".

A PF afirma que havia um esquema para lavar a cassiterita que foi retirada da terra indígena yanomami —a exploração é proibida nessas áreas protegidas. O minério era classificado como originário de mineração regular em Itaituba, no Pará, com o tratamento sendo realizado em Roraima, onde está localizada a terra dos yanomamis.

A terra indígena yanomami tem um grande e histórico problema com garimpo ilegal, situação que, além dos claros problemas ambientais trazidos, tem também impactos sociais na população da área protegida.

Em janeiro do ano passado, a PF encontrou 30 toneladas de cassiterita retirada da terra indígena yanomami. A operação Disco de Ouro foi um desdobramento desse fato inicial.

Recentemente, apreensões de cassiterita derivada dessa terra indígena têm sido observadas. No início do ano, na Operação Libertação, a PF disse que foram inutilizadas ou apreendidas 27 toneladas do minério. Em junho deste ano, a PF prendeu um suspeito que tentava sair do local com cerca de duas toneladas do minério.

ESTADÃO / ECONOMIA Hidrogênio branco: ‘Santo Graal’ da energia limpa pode estar enterrado nas profundezas do subsolo


Por Liz Alderman

05/12/2023 | 20h00

Atualização: 05/12/2023 | 21h02

7 min

de leitura

THE NEW YORK TIMES - No solo rochoso de Lorraine, uma antiga região de mineração de carvão perto da fronteira entre a França e a Alemanha, os cientistas guiaram uma pequena sonda em um dia recente por um poço de 800 metros na crosta terrestre. A espuma no lençol freático era uma descoberta empolgante: bolhas do tamanho de champanhe que sinalizavam um esconderijo potencialmente gigantesco do chamado hidrogênio branco, um dos combustíveis de queima mais limpa da natureza.


“O hidrogênio é mágico — quando você o queima, libera água, portanto não há emissões de carbono para aquecer o planeta”, disse um dos cientistas, Jacques Pironon, pesquisador sênior e professor da Universidade de Lorraine. “Achamos que descobrimos um dos maiores depósitos de hidrogênio natural em todo o mundo.”


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A descoberta de Pironon e de outro cientista, Philippe de Donato, ambos membros do respeitado Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, causou sensação na França, onde o governo prometeu se tornar um líder europeu em hidrogênio limpo. Ainda há muitas dúvidas sobre a descoberta, incluindo o tamanho exato e a melhor forma de extrair o gás. No entanto, ela se somou a um rastro de pistas em outras partes do mundo de que um Santo Graal de energia limpa pode estar à disposição na terra.


Governos e empresas de todo o mundo têm apostado no hidrogênio como uma pedra angular na luta contra as mudanças climáticas. Um setor multibilionário, apoiado por bilhões de dólares em subsídios e investimentos privados, surgiu para apoiar a fabricação de hidrogênio, que, em teoria, poderia substituir os combustíveis fósseis para alimentar fábricas, caminhões, navios e aviões, potencialmente removendo cerca de metade de todas as emissões de aquecimento do planeta.


Local de perfuração em depósito de hidrogênio, na França; descoberta do chamado hidrogênio branco somou-se a um rastro de pistas em outras partes do mundo de que um Santo Graal de energia limpa pode estar na Terra para ser explorado

Local de perfuração em depósito de hidrogênio, na França; descoberta do chamado hidrogênio branco somou-se a um rastro de pistas em outras partes do mundo de que um Santo Graal de energia limpa pode estar na Terra para ser explorado Foto: Violette Franchi/The New York Times

Mas a produção de hidrogênio comercial envolve a divisão da água em hidrogênio e oxigênio, um esforço que requer energia. Se forem usados combustíveis fósseis, o processo resulta em emissões de gases de efeito estufa, e o resultado é chamado de hidrogênio cinza. Aproveitar a eletricidade renovável de turbinas eólicas e painéis solares para produzir o que é chamado de hidrogênio verde é mais limpo, porém, mais caro.


O hidrogênio natural, também chamado de hidrogênio branco devido à sua pureza, pode ser um divisor de águas, dizem os cientistas, porque é uma fonte potencial de energia limpa gerada continuamente pela Terra. Os reservatórios de hidrogênio se formam quando a água aquecida encontra rochas ricas em ferro. Segundo o U.S. Geological Survey (Serviço Geológico dos EUA), apenas uma pequena fração desses depósitos poderia fornecer energia limpa suficiente para centenas de anos.


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“Se eles verificarem essa descoberta, ela será muito significativa e terá um grande impacto na sociedade”, disse Geoffrey Ellis, geoquímico do U.S. Geological Survey e especialista mundial em hidrogênio, sobre a descoberta francesa. “Há muitos outros lugares no mundo onde descobertas semelhantes também podem ser feitas, e as pessoas estão analisando isso porque realmente pode ser impactante.”


Em Lorraine, os cientistas disseram que seus testes sugeriram que de 46 milhões a 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio natural poderiam estar à espreita sob as minas de carvão, que foram abandonadas

Em Lorraine, os cientistas disseram que seus testes sugeriram que de 46 milhões a 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio natural poderiam estar à espreita sob as minas de carvão, que foram abandonadas Foto: Violette Franchi/The New York Times

Em Lorraine, os cientistas disseram que seus testes sugeriram que de 46 milhões a 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio natural poderiam estar à espreita sob as minas de carvão, que foram abandonadas na década de 1970 quando a França passou a usar energia nuclear. Em comparação, cerca de 70 milhões de toneladas métricas de hidrogênio são produzidas comercialmente no mundo todo a cada ano.


Reservas naturais de hidrogênio foram detectadas recentemente em partes dos Estados Unidos, Austrália, África, Rússia e também em outros lugares da Europa. Não é incomum encontrar hidrogênio durante a perfuração de gás ou petróleo, mas, no passado, as empresas ignoravam essas descobertas devido à baixa demanda.


Os pesquisadores não davam muita credibilidade ao hidrogênio branco até uma descoberta casual em Bourakébougou, um pequeno vilarejo em Mali, em 1987, quando um trabalhador acidentalmente ateou fogo em um poço de água ao acender um cigarro sobre ele. Descobriu-se que o poço continha hidrogênio natural, que agora é usado para abastecer lojas e residências depois que um empresário local contratou uma empresa de petróleo para extrair o gás.


Pesquisadores geológicos, a partir da esquerda: Philippe De Donato, Aurélien Randi e Jacques Pironon, no local de perfuração do depósito de hidrogênio na França

Pesquisadores geológicos, a partir da esquerda: Philippe De Donato, Aurélien Randi e Jacques Pironon, no local de perfuração do depósito de hidrogênio na França Foto: Violette Franchi/The New York Times

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“As pessoas não procuravam hidrogênio natural há anos e anos porque todos estavam concentrados na perfuração de petróleo e gás”, disse Julien Moulin, presidente da Française De l’Énergie, uma empresa de energia limpa que está trabalhando com Pironon e de Donato para testar e desenvolver projetos de hidrogênio branco. “Mas parece que estamos no início de uma nova dinâmica”, disse ele.


O principal negócio da Française De l’Énergie tem sido a captura de gás metano de veios de carvão e sua conversão em energia limpa para as indústrias da região. Com a descoberta do hidrogênio, a empresa intensificará seus esforços para explorá-lo e extraí-lo, disse o Sr. Moulin.


“Você já tem o bolo — agora a questão é como comê-lo?”, disse ele. “É preciso criar as ferramentas para desenvolver esse recurso, e esse será o trabalho dos próximos anos.”


Os esforços em Lorraine refletem um entusiasmo mais amplo que se espalha pelo setor de combustíveis limpos em relação ao hidrogênio natural. A crescente compreensão de que a Terra é sua própria fábrica de hidrogênio desencadeou uma mini-corrida do ouro entre pesquisadores e empresas de energia iniciantes ansiosas por fazer uma descoberta.


Bairro em Folschviller, antiga cidade de mineração de carvão na França

Bairro em Folschviller, antiga cidade de mineração de carvão na França Foto: Violette Franchi/The New York Times

Na Austrália, a Gold Hydrogen, uma empresa de energia independente, está explorando o hidrogênio natural perto de Adelaide após descobrir documentos históricos de dois poços de petróleo perfurados na década de 1930 que mostravam grandes quantidades de hidrogênio de alta pureza na área.


Bill Gates está entre os investidores dos Estados Unidos que financiaram a Koloma, uma empresa do Colorado que busca hidrogênio em uma enorme fenda geológica no Meio-Oeste. Na Europa, pequenas empresas de energia da Espanha, Suíça, países nórdicos e outros estão vasculhando a crosta terrestre.


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Ainda não se sabe se o hidrogênio branco está à altura do que se espera. Até o momento, as descobertas variam de potencialmente enormes que podem levar anos para serem verificadas, como a de Lorraine, a acumulações pequenas ou extremamente profundas que podem não ser economicamente viáveis, disse Ellis. Ainda há dúvidas sobre se essa é uma fonte ilimitada de combustível limpo. As grandes empresas petrolíferas, como a TotalEnergies da França, não se lançaram ao investimento e parecem estar esperando para ver como as coisas se desenvolvem.


Além disso, há o custo. Embora os Estados Unidos e a Europa tenham reservado bilhões para subsidiar o desenvolvimento do hidrogênio verde usando energia renovável, nada desse dinheiro é destinado a incentivar a produção de hidrogênio branco.


E os produtores de hidrogênio branco precisam ficar de olho no preço final do gás. Embora o hidrogênio verde custe cerca de US$ 5 por quilograma para ser produzido — mais do que o dobro do hidrogênio cinza — o Departamento de Energia dos EUA está patrocinando um programa para que o preço do hidrogênio verde chegue a US$ 1 por quilograma em uma década.


Na Espanha, uma start-up chamada Helios Aragón está desenvolvendo um projeto de produção de hidrogênio natural nos Pirineus que, segundo ela, será capaz de igualar ou superar esse preço.


“A pergunta número 1 é qual será o custo”, disse Marco Alverà, executivo-chefe da Tree Energy Solutions, ou TES, uma empresa que planeja produzir e importar hidrogênio limpo para a Europa. Para o hidrogênio natural ser competitivo, “depende de muitos fatores, incluindo a pressão a que o gás está submetido, a temperatura e o tipo de rocha que é perfurada”, disse ele.


Local de perfuração, onde os testes sugerem que até 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio podem estar no subsolo, na França

Local de perfuração, onde os testes sugerem que até 260 milhões de toneladas métricas de hidrogênio podem estar no subsolo, na França Foto: Violette Franchi/The New York Times

Nesse meio tempo, a Europa está construindo uma grande rede de dutos que poderiam fornecer hidrogênio manufaturado para fábricas e locais de combustível. A esperança é que o hidrogênio branco possa um dia fluir por eles.


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Se tudo correr conforme o planejado em Lorraine, novas perfurações começarão no próximo ano com uma sonda avançada que coletará amostras de gás de até 2,9 quilômetros abaixo do solo — mais profundo do que o comprimento da ponte Golden Gate — para testar a magnitude do tesouro de hidrogênio, com o objetivo de extrair o hidrogênio natural até 2027 ou 2028.


Pironon e de Donato têm grandes esperanças. Quando começaram a procurar gás metano deixado pelas minas de carvão, descobriram hidrogênio à medida que se aprofundavam. A meia milha de profundidade, eles encontraram concentrações de hidrogênio mais altas do que as relatadas em qualquer outro lugar do mundo, disse o Sr. de Donato.


“Podemos ter uma verdadeira fábrica de hidrogênio escondida sob nossos pés”, disse ele. “É um motivo de grande entusiasmo.”


Este conteúdo foi traduzido com o auxílio de ferramentas de Inteligência Artificial e revisado por nossa equipe editorial. Saiba mais em nossa Política de IA

Mario Vargas Llosa -Entre as invenções e vaidades de André Malraux, OESP

 Para me distrair, peguei as memórias de André Malraux, um livro que 100 vezes decidi que não valia a pena ler, porque os personagens, entre os quais estão alguns dos principais líderes do século 20, encolhem-se para se submeterem à estatura desproporcional de Malraux e, tímidos e sempre às ordens de seu interlocutor, dizem tudo o que o autor quer que digam.

Em meados dos anos 60, quando por meia década foi ministro dos Assuntos Culturais do general de Gaulle na Quinta República, Malraux fez uma longa viagem ao Extremo Oriente, enviado pelo próprio chefe do estado francês, ao que parece, para se curar de algumas doenças causadas, entre outras coisas, pelo álcool e por uma vida familiar muito tensa.

Essa viagem é a principal referência das Antimemórias, surgidas em 1967, depois de vários anos sem livros publicados, embora muitas das coisas que Malraux conta ou inventa tenham ocorrido antes ou depois dessa viagem, que serve de marco às suas memórias e reflexões.

Há tanta invenção e vaidade no autor que é impossível saber o que é verdadeiro nos seus diálogos com Mao ou Nehru, nos seus encontros com de Gaulle, nas suas explorações arqueológicas ou históricas, nas suas façanhas durante a Guerra Civil espanhola (ele ajudou, por meio do governo francês, a organizar uma esquadra com aviões franceses e a colocou à disposição dos republicanos, os quais comandou, embora não soubesse pilotar nem atirar) ou na Resistência contra os nazistas (à qual parece que aderiu em 1944 e não, como nos fez crer, no início da década), pela qual recebeu condecorações.

Por certo, há um feito indiscutível: a aventura singular de procurar, aos trinta e poucos anos, juntamente com o capitão Édouard Corniglion-Molinier e outro companheiro, no deserto do Iémen, o reino da Rainha de Sabá, que é meio fantástica – o mínimo que se pode dizer dela –, que, nas brumas, aparece guiando esta dupla de personagens e que aqui atua como uma presença silenciosa, sempre sob as ordens de Malraux, que descreve sua musa de um jeito deslumbrante.

Malraux, grande admirador do britânico T.E. Lawrence, tem aquela paixão pela aventura de certos europeus fascinados por mundos que são ou parecem exóticos – e encontra o que quer encontrar, exista ou não. Tudo indica que o que estava nas fotografias que tirou do avião que sobrevoou a zona do Iémen onde acreditava que se encontravam os restos da cidade morta da Rainha de Sabá era simplesmente um oásis com algumas casinhas e ruínas sem a menor relação com o reino bíblico, embora isso seja o que menos importa na sua aventura.

Capa de 'Antimemórias', livro de André Malraux que, na opinião de Vargas Llosa, é 'desajeitado'
Capa de 'Antimemórias', livro de André Malraux que, na opinião de Vargas Llosa, é 'desajeitado' Foto: Reprodução de capa/Gallimard

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A partir daí, tudo é um declínio singular nesse livro em que os personagens principais são, em aparência, de Gaulle, Mao, Nehru ou aventureiros lendários muito anteriores, como o francês Marie-Charles David de Mayréna. Mas, na verdade, o personagem mais importante é o próprio Malraux. Os demais se referem a Malraux como a uma estátua, e, em cada relato que faz de seus encontros com eles, o próprio autor transmite uma lição que apaga instantaneamente tudo o que ele diz – ou pelo menos é este o efeito dos intermináveis monólogos que ele nos inflige.

O autor de A Condição Humana não tem interesse em nos contar sobre sua vida privada, como acontece nas memórias confessionais, ou o que está por trás da vida pública, como acontece nas memórias de figuras públicas. Parece mais interessado em sua própria importância como protagonista dos acontecimentos históricos ou na forma como os outros protagonistas, os verdadeiramente decisivos, se referem ao que ele diz ou às coisas que ele fez.

“O que me interessa em qualquer homem”, diz Malraux, “é a condição humana e certas características que expressam não tanto uma personalidade individual, mas sua relação particular com o mundo”. Essa frase, que resume sua visão dos personagens que desfilam ao longo do livro e sua forma de abordá-los, na verdade descreve melhor seu papel nestas Antimemórias, em que tudo gira em torno de seu impacto nos acontecimentos históricos que o tocam de perto ou de sua influência na ideia que seus interlocutores têm dos acontecimentos dos quais participaram ou foram protagonistas.

Em outro momento do livro, o autor afirma algo que parece uma justificativa para sua obsessão pela grandiloquência histórica: “De que me importa aquilo que só importa para mim?” O resultado é um texto desajeitado, retórico e enfadonho que não leva a lugar nenhum.

As melhores passagens são aquelas que têm a ver com o mundo da aventura que tanto o fascina, aqueles exploradores loucos e extravagantes que levam a vida em jornadas cujo objetivo não é sempre claro, pois mais importa o percurso que o propósito. Ele chama esse tipo de personagem de farfelus [termo francês para “doido” ou “excêntrico”] e é evidente que ele teria gostado de ser um deles ou que tentou sê-lo em certos momentos. Quando não pôde, inventou que tinha sido. Porque para ele a fronteira entre literatura e realidade era muito confusa, como o livro demonstra.

Mas tudo isso, que poderia ter dado um livro apaixonante, perde-se entre intermináveis páginas dedicadas às suas teorias sobre acontecimentos históricos e aos seus diálogos com líderes a quem faz dizer coisas que justificam essas teorias. Em todas essas longas passagens não há parênteses nem diferenciações, todas seguem um perfil teimoso e cego, a serviço de Malraux e de algum amigo ocasional, por exemplo Nehru e de Gaulle, que por vezes parecem quase seus discípulos. Todos os “discípulos” são tratados com o mesmo estilo, em descrições infinitas e nas quais só por vezes há alguma referência ou reflexão sobre a arte oriental, de que o autor tanto gostava.

Como era diferente o ministro dos Assuntos Culturais nos seus esforços cotidianos, quando inaugurava casas dedicadas à cultura e organizava grandes exposições, nos discursos que proferia (sem falar, claro, nos seus grandes romances). Ninguém que os ouviu foi capaz de esquecê-los. Eu morava em Paris naqueles anos e me lembro do enorme impacto que tiveram. As orações fúnebres, como a que proferiu por ocasião do traslado das cinzas de Jean Moulin, herói da Resistência, para o Panteão, ou durante o funeral de Le Corbusier, no pátio do Louvre, pouco depois de regressar da viagem ao Extremo Oriente, em 1965, são joias literárias.

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Mas este foi o canto do cisne de Malraux, como comprovam estas Antimemórias, que surgiram alguns anos depois daqueles discursos. Era um gênio? De certa forma, sim. Não há dúvida de que A Condição Humana, seu romance sobre uma rebelião comunista fracassada em Xangai, é uma obra-prima. E seus discursos não eram retórica vazia, como os de tantos políticos, mas sim uma literatura magnífica, tanto no conteúdo quanto na forma. Mas, ao mesmo tempo, era um homem que acreditava na sua glória e cultivava essa vaidade ao exagero. Os discursos inflamados, que jamais esqueceremos, são a negação dessas Antimemórias e a prova de que, na fase final da vida, escrevendo ele superava a si mesmo. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU