segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Antigas musas cantam, Dora Kramer FSP

 

Fundação Nacional de Saúde acaba de ser oficialmente ressuscitada depois de o governo ter tentado acabar com ela no início do ano por medida provisória, morta no Congresso por decurso de prazo.

Ressurge mais viva do que nunca com a decisão da comissão "técnica" de recriar superintendências em todos os estados da Federação. A ideia inicial da MP, editada no dia seguinte à posse de Lula, era montar uma estrutura enxuta em Brasília apenas com algumas diretorias, que dividiriam as funções de atendimento básico em saúde e saneamento com os ministérios da Saúde e das Cidades.

Os parlamentares do centrão, sempre críticos do expansionismo administrativo em benefício alheio às suas conveniências, não gostaram do enxugamento. Muito menos apoiaram a retirada da Funasa do guarda-chuva da pasta da Saúde, onde há mais espaços para a alocação de emendas.

Resultado: brigaram durante dez meses e venceram a parada. Conseguiram que antigas musas da "capilaridade" voltassem a cantar. Assim como de novo entoaram seus cânticos na Caixa Econômica Federal e, tudo indica, voltarão a solfejar na Petrobras. Aqui por iniciativa governamental, naquela base da mão que lava (ou suja) a outra.

Ex-presidente da fundação, o deputado Danilo Forte (União-CE) assumiu a liderança das negociações para a retomada dos velhos trabalhos dizendo que de agora em diante tudo seria diferente. "Se entregarem a Funasa à política, ela nasce morta", afirmou há cerca de seis meses.

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Pois bem, foi feita a entrega à disputa política, Republicanos e PSD à frente, e foi isso que a fez reviver com 27 superintendências para serem postas a sabor do leilão da partilha partidária. Note-se, de partidos que na sua maioria apoiaram Jair Bolsonaro e perderam a eleição.

Falta ao deputado Forte rever ou explicar sua previsão sobre os males do renascimento da Funasa na entrega à política. Na pior acepção da palavra.


Os grandes traidores que Le Carré conheceu mentiam por vocação, João Pereira Coutinho, FSP

 1. Chego a Londres com uma tempestade nos jornais: foi o rei Charles e a princesa de Gales a manifestarem "preocupações" com a cor da pele do filho de Harry e Meghan.

A revelação está no livro "Endgame", de Omid Scobie, mas não na versão original inglesa. Os nomes só aparecem na edição holandesa, removida das livrarias para evitar processos judiciais. O autor e a editora admitem que se tratou de um "equívoco", mas não explicam como se cometem "equívocos" desses.

A família real pondera agora a melhor forma de responder à calúnia. Harry e Meghan, em silêncio pesado, não confirmam nem desmentem a identidade dos criminosos.

E os ingleses, viciados na mais importante novela do país, dividem as suas lealdades e explicam a real intenção das dúvidas de Charles e Kate.

Na versão benigna, a pergunta foi uma curiosidade, como tentar saber a cor dos olhos ou a textura do cabelo. Na versão mais maligna, Charles e Kate têm simpatias pela Ku Klux Klan; se Archie, a criança, não tivesse uma compleição ariana, isso seria a desonra da família. E eu?

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Amigos ingleses, angustiados com a questão, perguntam a Little Couto o que tem ele a dizer sobre o assunto. Little Couto entende a gravidade e, perante os seus olhares ansiosos, responde sem hesitar: "Difícil dizer, uma vez que eu não estava presente".

Essa hipótese, por incrível que pareça, não tinha ocorrido aos exércitos em guerra.

Composição feita de três objetos. Ao centro, a peruca de Milei com uma pomba ouriçada aninhada em cima é margeada pelo chapéu de Napoleão repetido dos dois lados.
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 4 de dezembro de 2023 - Angelo Abu/Folhapress

2. Assisto a "Napoleão", de Ridley Scott, a poucos metros da estação de Waterloo. Que apropriado! E então reparo que o público, majoritariamente inglês, ri alto com vários momentos do filme, sobretudo nas partesmais solenes ou sentimentais.

Não sei se em Paris a experiência seria a mesma. Mas o filme, obviamente pró-inglês, apresenta um imperador reduzido à sua dimensão mais patética, mais infantil.

Isso é mérito do diretor, sim, mas sobretudo de Joaquin Phoenix: o momento em que ele ri ao saber que será enviado para a ilha de Santa Helena, a sua última morada, é talvez a sequência mais pungente de todo filme, pelo seu desarmante anticlímax.

Ali está o homem que dominou quase toda a Europa, enviado ao castigo como se fosse uma criança crescida a quem se nega um brinquedo. Três milhões de mortes depois.

Mas o grande filme da minha estadia inglesa é o documentário de Errol Morris sobre John Le Carré. O título, "O Túnel dos Pombos", remete a um episódio da infância de Le Carré: o pai, um vigarista profissional, gostava de levar o filho até Monte Carlo para assistir ao tiro aos pombos.

Funcionava assim: as aves saíam de um túnel junto ao mar e os hóspedes, no hotel, disparavam. As aves sobreviventes regressavam ao terraço do edifício, onde estavam as suas gaiolas, para serem capturadas pelos empregados do hotel e encaminhadas para o túnel e para a morte.

É uma metáfora aterradora sobre duplicidade e traição, os temas caros a Le Carré. Não apenas porque a Guerra Fria e os seus espiões viviam desses vícios. Mas porque trair, acrescenta o autor, é para os traidores profissionais uma forma de respiração natural.

Nós, meros mortais, podemos trair por necessidade. Por maldade. Por fraqueza. Por ideologia. Por amor. Mas os grandes traidores que Le Carré conheceu —nomes como Kim Philby, colega nos serviços secretos e agente duplo para a União Soviética— faziam-no por vocação.

Kim Philby era alguém para quem a mentira e a deslealdade eram tão necessários como respirar, comer e amar. Uma forma de se sentir vivo.

"Se você pedisse a Kim Philby para tomar conta do seu gato", confessa Le Carré a certa altura, "ele encontraria uma forma de atraiçoar o gato".

3. Conheci Javier Milei anos atrás, no Fórum da Liberdade, em Porto Alegre. O cabelo foi o que mais me impressionou: como é possível ter 50 anos e ostentar uma juba daquelas, sem recorrer a peruca ou implantes?

É suspeito. Não confio em nenhum homem que, a partir dos 50, tenha uma densidade capilar assim. Parafraseando Nelson Rodrigues sobre os magros, todo cabeludo é um canalha.

O que é válido para a vida comum é válido para a política. Soube pelo jornal The Observer que o deputado Rory Stewart, uma das promessas conservadoras, teria dito em podcast popular por estas bandas ("The Rest is Politics") que "o populismo tem tudo a ver com o cabelo".

De fato, é difícil discordar. Lembremos Trump. Ou Boris Johnson. Ou Javier Milei. A provocação tricológica faz parte da simbologia antissistema. Os eleitores aplaudem.

No fundo, a democracia gosta pouco de calvos. Se dúvidas houvesse, quando foi a última vez que o Brasil elegeu um para o Palácio do Planalto?

Javier Milei, ,presidente eleito da Argentina - Agustin Marcarian/Reuters

Só não esperava que, na revolta em curso contra a democracia liberal, os eleitores corressem para o outro extremo.

Entre a bola de sinuca e o ouriço-cacheiro, a virtude está no meio.