segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Alvaro Costa e Silva Loredano sacode a poeira que sepultava J. Carlos, FSP

 Quando Cássio Loredano começou a desenhar para a imprensa —nas páginas do jornal Opinião, em 1972—, não sabia quem era J. Carlos (1884-1950): “Diziam que ele era o maior. Mas não mostravam isso. Eu resolvi mostrar”.

Hoje Cássio não tem dúvida de que J. Carlos foi o mais completo caricaturista brasileiro em todos os tempos e um dos melhores do século 20 no mundo. Em 1994, ao ganhar uma bolsa, ele resolveu mapear a trajetória do artista cuja obra estava sepultada debaixo da poeira fina que encobria as coleções de O Malho, Careta, Fon-Fon, O Tico-Tico, A Cigarra, entre outras. Foram 48 anos em cima da prancheta, resultando em mais de 50 mil desenhos. Cássio garante ter visto e avaliado 35 mil deles.

 Biotônico Fontoura no Almanaque d' O Tico Tico. Sem data.
Ilustração de j.Carlos para propaganda do Biotônico Fontoura no Almanaque d'O Tico Tico. Sem data. - Reprodução

“Quando comecei o trabalho, havia em circulação cerca de 600 desenhos, escondidos em livros raros e pequenos catálogos”, ele lembra. “Eu chegava à casa dos herdeiros, em Petrópolis, às nove da manhã e só saía às sete da noite. Ficava de pé, ao lado de uma máquina, copiando as páginas das revistas. Fiz esse garimpo durante um ano, tempo de duração da bolsa. Não me custou sacrifício nenhum, pois o entusiasmo era maior. Estava descobrindo um continente. Agi como o espanador de um país sem memória.

Vinte e seis anos depois, o pesquisador está lançando o décimo livro em torno de J. Carlos, “Reclames” (Edições Folha Seca), que contempla sua produção para propaganda. Ousado, ele era capaz de bolar um desenho com Ruy Barbosa recomendando as virtudes do vermute Cinzano para o presidente Rodrigues Alves. Num tempo em que a fotografia era pouco utilizada e o número de analfabetos enorme no Brasil, fazia com que as latas de goiabada Peixe e as garrafas de Biotônico Fontoura saltassem e capturassem o olhar.

Propaganda ilustrada por J. Carlos para a goiabada Peixe no Almanaque d' O Tico Tico, em 1936.
Propaganda ilustrada por J. Carlos para a goiabada Peixe no Almanaque d' O Tico Tico, em 1936. - Reprodução

“Sua faceta publicitária é uma das minhas prediletas. Está tudo lá: a sobriedade, a elegância, a limpeza formal, que refletem inteligência visual e clareza mental”, define Cássio.

Em imagem em p&b, um homem vestido de ternos no estilo anos 40 em frente a um enorme navio
Capa do livro "Reclames: J. Carlos Publicitário" (Edições Folha Seca), de Cássio Loredano. - Reprodução

Identitarismo tem problemas de conteúdo e método- Hélio Schwartsman FSP

 O identitarismo que parece ter-se assenhorado de nossa época, em especial do pensamento de esquerda, tem dois problemas, um de conteúdo e outro de método. Comecemos pelo conteúdo.

A esquerda tradicional cerrava fileiras no universalismo. A igualdade de direitos derivava da humanidade comum, não de características de grupos como negros, mulheres, homossexuais. Não se contesta que essas minorias sofram mais discriminação, o que justificaria priorizar suas demandas. A questão é que o tipo de discurso que se adota faz diferença. Enquanto a esquerda clássica inscrevia o fim da discriminação no contexto de um movimento de emancipação que beneficiaria a todos, a política identitária ressalta as diferenças entre as pessoas sem apontar nada de universal.

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Não me parece despropositada a tese de que o deslocamento da esquerda para o identitarismo contribuiu para a polarização e os ressentimentos que hoje alimentam a extrema direita.

A questão do método é ainda mais disruptiva. O identitarismo extrai sua força do discurso moralizante. As questões que o movimento levanta são reais, mas, ao enquadrá-las como apenas morais —e não como argumentos que precisam ser examinados—, ele se sente no direito de interditar o debate, caso não veja no outro lado credenciais éticas que considere aceitáveis. Só que esse julgamento é muitas vezes feito com base em critérios subjetivos como a “ofensividade” do discurso ou até em como indivíduos específicos se sentem em relação a ele. Esse é um beco sem saída, porque não há declaração não trivial que não desagrade a alguém. Daí os cancelamentos e lacrações.

Isso é grave porque, como já ensinava Stuart Mill, precisamos que as más ideias circulem e sejam discutidas para que as boas possam triunfar. Eu diria até que, não fossem os sofistas e a necessidade que Sócrates viu de rebatê-los, não de calá-los, a filosofia como a conhecemos não existiria.


STEVE JOBS, 10 ANOS DEPOIS Último gênio da tecnologia?, OESP


Guilherme Guerra


04 de outubro de 2021 | 05h00





Quem não presta muita atenção pode pensar que o mundo da tecnologia está mais sem graça desde a morte de Steve Jobs, em 5 de outubro de 2011. Nos anos 2000, o fundador da Apple liderou saltos tecnológicos fáceis de perceber: do computador para o iPod, do iPod para o iPhone e do iPhone para o iPad. Nesses 10 anos sem Jobs, a impressão é a de que ele foi o último da sua espécie, o último entre os gênios da tecnologia.


Mas não é bem assim. Embora sejam menos palpáveis, a última década viu importantes chacoalhões na tecnologia. A disseminação da computação em nuvem tornou possível o nascimento de gigantes, como Netflix e Spotify. A economia de dados alavancou o modelo de negócio das redes sociais. Avanços em inteligência artificial permitiram não só dispositivos falantes como a Alexa, mas experimentos com carros autônomos. Até exploração espacial e computação quântica apareceram no radar. O que é mais difícil detectar é se existe algum rosto para simbolizar esses avanços, alguém da “linhagem” do pai do iPhone.


Como alguns desses avanços estão ligados a algumas das principais empresas do mundo, o caminho mais fácil para encontrar o “sucessor” de Jobs é tentar olhar para os seus fundadores. Estariam Jeff Bezos, da Amazon, Mark Zuckerberg, do Facebook, Larry Page e Sergey Brin, do Google, e Elon Musk, da Tesla e da SpaceX, na mesma prateleira de Steve Jobs?



Especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que, talvez, o mais próximo do fundador da Apple seja Musk, cuja montadora de carros elétricos causou uma reviravolta em um setor centenário - com o avanço da Tesla, nomes tradicionais como GM, Ford, Volkswagen e BMW passaram a investir no modelo. Já a SpaceX, que tem como meta colocar humanos em Marte, já conseguiu colocar quatro pessoas comuns para viajar na órbita da Terra, algo impensável para uma empresa privada até então.


“Elon Musk é um gênio porque faz investimentos em tecnologias que podem alterar o curso da Humanidade drasticamente”, explica Eduardo Pellanda, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Além do carro elétrico e de foguetes, o empreendedor também quer colocar satélites para oferecer internet em pontos remotos do Planeta, como nos oceanos e na Antártica, inserir chips nos cérebros das pessoas e construir túneis subterrâneos de altíssima velocidade para longas distâncias, o Hyperloop. “São revoluções que podem ser até mais impactantes do que aquelas promovidas por Jobs.”


De fato, embora em áreas diferentes, são avanços que podem inaugurar novas eras para a humanidade, como fizeram os smartphones. As semelhanças entre os dois ocorre também na personalidade controversa. Só no ano de 2020, Musk menosprezou a pandemia, publicou desinformações sobre a doença e se recusou a tomar qualquer vacina. Seus comportamentos tiveram impacto: as fábricas da Tesla nos EUA tiveram trabalhadores contaminados. Vale lembrar: além de ter várias passagens dignas de “cancelamento na internet”, Jobs ignorou a medicina convencional quando teve o câncer de pâncreas diagnosticado, buscando tratamentos alternativos.


“Elon Musk é um gênio porque faz investimentos em tecnologias que podem alterar o curso da Humanidade drasticamente”


Eduardo Pellanda, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS)

Embora tenham construído impérios com base tecnológica, tanto Bezos quanto Zuckerberg não são vistos como sucessores do fundador da Apple. “Tanto Jobs quanto Musk têm uma base cognitiva em tecnologia muito boa. Isso permite a eles enxergarem necessidades de fundamento tecnológico tanto no curto quanto no longo prazo, que podem ser exploradas comercialmente”, afirma Fábio Gandour, que liderou por quase dez anos o laboratório de pesquisas da IBM no Brasil. “Já Bezos e Zuckerberg embarcaram num movimento que tinha base tecnológica, mas era essencialmente comercial. Não são iniciativas sustentadas por uma visão de tecnologia”, diz.


GÊNIOS ESCONDIDOS

“Quando as pessoas pensam em um gênio da tecnologia, elas pensam em alguém que é um inovador em série, como Jobs, Musk e Thomas Edison”, define Melissa Schilling, professora da Universidade de Nova York especializada em inovação. Em comum, essas mentes têm uma combinação de inteligência, tendência a resistir a normas e uma persistência que vem do idealismo ou de uma personalidade obsessiva – “ou dos dois”, diz ela. E isso não é um traço raro, diz: “Há muitos outros gênios que já conhecemos e vários que iremos descobrir com o tempo”.



Para especialistas, Elon Musk, da Tesla, é o atual sucessor de Steve JobsLUCY NICHOLSON

O desafio, na verdade, está em manter um sistema de inovação que fomente novos nomes em um cenário de aquisições bilionárias realizadas por grandes empresas de tecnologia. Zuckerberg, por exemplo, criou um império de redes sociais ao comprar o Instagram e WhatsApp. Os fundadores dos dois apps passaram a ter de servir  aos interesses do Facebook, o que nem sempre significa caminho livre para a inovação.


“Muitas dessas empresas gigantes compram startups não só para adquirir a tecnologia, mas também para ter os talentos dentro de casa”, explica Pellanda. Ele cita alguns exemplos na própria Apple: a inteligência artificial Siri, o sensor tridimensional LiDAR e o leitor de reconhecimento de rosto (o Face ID) vieram de companhias pequenas compradas pela gigante. “Agora, a inovação de grandes empresas vem da soma do que é feito nos laboratórios internos e das startups compradas”, aponta o professor.


Isso significa que essas aquisições giram a “roda” da inovação, com mais dinheiro circulando para novos projetos de “startupeiros” ambiciosos. “Muitos inovadores estão felizes em ter suas startups compradas pelas grandes companhias, de modo que eles podem ir para a próxima inovação”, explica Melissa.


“É difícil surgir um novo Steve Jobs, mas isso não quer dizer que eles não existam. Essas pessoas estão nas pontas”


Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio)

Consequentemente, essas gigantes podem ter modelos de negócios mais consistentes, já que não dependem de um único nome para prosperar. Sem Steve Jobs no comando, a Apple, por exemplo, conseguiu atingir o status de empresa mais valiosa do mundo e primeira a atingir avaliação de mercado de US$ 1 trilhão e, no ano seguinte, de US$ 2 trilhões, em 2019. Hoje, não há um rosto comandando a empresa, mas é difícil encontrar alguém que menospreze sua influência.


Assim, em vez de um único rosto conhecido, os avanços tecnológicos vão se tornando resultado de uma colcha de retalhos composta por vários anônimos. Fica mais difícil apontar um sucessor de Jobs na novíssima geração.


“O candidato a futuro ‘Steve Jobs’ será aquele que entender que é mais interessante ser o rosto de uma futura grande empresa de tecnologia do que ser comprado”, explica Carlos Affonso Souza, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS-Rio). “É difícil surgir um novo Steve Jobs, mas isso não quer dizer que eles não existam. Essas pessoas estão nas pontas. Resta saber o que vai acontecer com elas.” / COLABOROU BRUNO ROMANI