domingo, 6 de junho de 2021

JEFERSON TENÓRIO - Um idiota na Presidência da República, FSP

 Jair Bolsonaro certamente nunca leu Dostoiévski, e imagino que nem teria capacidade cognitiva para tanto. Desde que o presidente chamou de “idiotas” as pessoas que ficam em casa fazendo quarentena, pensei que poderia fazer alguma relação com o personagem Michkin, do livro “O Idiota”. Não achei relação. Mesmo assim, fiz um esforço para imaginar como o personagem do autor russo se comportaria ocupando o Palácio do Planalto.

O livro de Fiódor Dostoiévski conta a história de um príncipe humanista, epilético e que carrega uma compaixão sem limites, uma ingenuidade mordaz, um sujeito que não vê maldade nas pessoas e que é capaz de perdoar até os seus algozes, por isso é chamado de idiota. O personagem é, na verdade, uma mistura de Dom Quixote com Jesus.

Em meu exercício de imaginar Michkin ocupando o Palácio do Planalto, cheguei a uma conclusão: a de que estaríamos muito melhores com “o idiota” no poder. Pois certamente estaríamos vacinados, certamente teríamos um auxílio emergencial (não de R$ 300, mas de R$ 3.000, o que, convenhamos, é o mínimo para se ter uma vida digna).

Com “o idiota” no Palácio do Planalto teríamos uma economia estável, um Ministério da Educação laico e que saberia o que fazer com o Enem. Teríamos também um ministro do Meio Ambiente sem envolvimento com esquemas de madeireiros ilegais na Amazônia, nem secretário da Cultura andando armado, mas com livros e que soubesse pelo menos quem é Lina Bo Bardi —e, principalmente, teríamos um ministro da Saúde que entendesse de medicina, não só de logística, e que não deixaria ninguém morrer por falta de oxigênio.

Além de imaginar “o idiota” de Dostoiévski na Presidência, fiz um outro exercício: de que modo a filósofa judia alemã Hannah Arendt analisaria a CPI da Covid se ainda estivesse entre nós.

Depois da fala do senador Renan Calheiros (MDB-AL) na abertura de uma das sessões da comissão, quando comparou o comportamento de alguns depoentes com aqueles que foram julgados no famigerado tribunal de Nuremberg pelos crimes cometidos pelos nazistas, pensei que poderia imaginar isso também. Embora haja diferenças significativas entre o holocausto e a pandemia, sou obrigado a concordar com o senador: há semelhanças de comportamento entre alguns dos depoentes da CPI e os acusados de Nuremberg.

Pôr a culpa na burocracia, por exemplo, ajuda os responsáveis pelos crimes a lidar melhor com suas consciências ou a tentar se livrar da pena. Burocratizar a administração e o manejo de ações que têm como resultado a morte de milhares de pessoas é uma estratégia conhecida.

No entanto, as semelhanças param por aí. O que vemos hoje é muito pior e está para além da “banalidade do mal” —expressão cunhada no livro que Hannah escreveu sobre o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann—, pois, aqui, a razão, a verdade e as evidências não estão mais em crise, elas entraram em colapso. A verdade foi implodida.

Trazer falas em vídeos do presidente Bolsonaro contra a compra de vacinas, contra o isolamento e contra as máscaras não é suficiente. O esvaziamento dos fatos pela negação do negacionismo é um fenômeno que extrapola uma análise via “banalidade do mal”. Até porque o assombro de Hannah Arendt ao constatar que o autor de tamanha monstruosidade contra os judeus era um homem comum, um burocrata, um cidadão de bem e cumpridor de suas tarefas, não corresponderia ao que ocorre hoje.

Repito: a situação aqui é outra, pois sabemos que um crime foi cometido e que está macabramente exposto no número de vítimas da Covid-19, um crime que já tem fatos e circunstâncias comprovados. No entanto, o que mais causa perplexidade é a narrativa de que tudo foi feito pensando em fazer o melhor. Nesse sentido, Hannah teria que fazer, talvez, um outro exercício teórico: “a banalidade do bem”.

Portanto, nem Hannah nem o autor russo dariam conta do que está acontecendo hoje no Brasil. Mas uma coisa é certa: ter “o idiota” de Dostoiévski na Presidência nos pouparia de muitos sofrimentos. Sim, Michkin, o idiota, é melhor que Bolsonaro.


Ruy Castro - Patriotices de Oswald, FSP

  EDIÇÃO IMPRESSA

Leitores desta coluna no domingo último (“Verbosismo passadista”, 30/5) atribuíram à “juventude” de Oswald de Andrade o dilúvio de adjetivos e patriotices numa ode a Rui Barbosa, escrita e lida por ele no Centro Acadêmico 11 de Agosto em 1919. Jovem? Oswald já tinha ali 29 anos. Rui, acredite ou não, era uma de suas ardentes admirações assim como Olavo Bilac, que morrera meses antes. Eis mais alguns trechos de seu discurso:

“A Faculdade de Direito de São Paulo é uma tradição que constrói tradições. Sob o ajardinamento impassível deste vale existe, pulsa, canta e corre o seu pequeno curso fecundo, esse riacho do Anhangabaú cujo batismo secular acompanha a cidade com a bênção longínqua dos seus primeiros moradores. E a semente que Rui Barbosa deixou em terra paulista ficará, invisível como o rio, sugestiva, entranhada, murmurante, prenhe de germens e de imortalidades.

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“No pátio da tradição, nas salas frias das aulas ou no tumulto dos corredores, formando partidos, dividindo-se em grupos, criando chefes e programas —numa ideia e num estremecimento, os estudantes confraternizavam. Era na aclamação à Pátria, que Bilac ensinara do seu púlpito de apóstolo.

“Pátria! Entre arvoredos uma casa, um pedaço de chão e o céu alto de promessas! Esbatida essa visão por 8 milhões de quilômetros de país, conquistados, forçados por um punhado de brancos, que haviam em séculos de pertinácia transposto oceanos inéditos e partido depois na escalada rude das serras de mistério, em tardes de cor nova e madrugadas impossíveis —era a Pátria bem ganha e, portanto, a Pátria a ser completada, defendida e carregada nos nossos mais íntimos sacrários.” Etc.

No Rio, naquele mesmo 1919, João do Rio, Lima Barreto, Manuel Bandeira, Agrippino Grieco, Orestes Barbosa e outros já pensavam e escreviam de forma adulta, em brasileiro e... moderna. Não estavam esperando por 1922.

Oswald de Andrade, finalmente modernista, nos anos 1920
Oswald de Andrade, finalmente modernista, nos anos 1920 - Reprodução

O erro chinês, editorial FSP

Gigante asiático vai corrigindo tardiamente política de controle de natalidade

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Criança entre esculturas em Pequim - Noel Celis/AFP

editoriais@grupofolha.com.brAo contrário do Brasil, a China realizou seu censo populacional na data estipulada (2020), e os resultados da pesquisa, que mal começaram a ser divulgados, já vão deflagrando mudanças importantes nas políticas públicas do país.

Ao que tudo indica, muito em breve os casais chineses receberão autorização para ter um terceiro filho. Para o país que durante uma geração inteira impôs a política do filho único, trata-se de contraste gritante. Mas a medida é tardia e provavelmente insuficiente.

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Tardia porque mais de três décadas de política de filho único fizeram com que a população chinesa esteja envelhecendo muito rapidamente. Isso significa mais pressão por gastos em saúde e previdência e menos jovens a compor a população economicamente ativa que financiará a despesa.

O desequilíbrio etário não foi o único resultado da política de filho único. Devido à tradição local do dote no casamento, filhos homens sempre foram mais valorizados do que mulheres (significavam um importante dispêndio a menos para a família). Com o advento das ultrassonografias, veio o fenômeno dos abortos seletivos.

Como os casais só podiam ter um filho, asseguravam-se de que a criança fosse do sexo masculino. Nos grupos etários mais afetados pelo fenômeno, hoje na adolescência ou saindo dela, há cerca de 120 homens para cada 100 mulheres.

A liberação do terceiro filho é provavelmente insuficiente porque, em 2015, a China já havia passado a admitir que as famílias tivessem dois. A mudança, entretanto, mal afeta a taxa de fecundidade, que está em 1,3 filho por mulher, bastante abaixo dos 2,1 necessários para manter a população estável.

Autorizações estatais não afetam os principais freios à natalidade, que são a urbanização e a educação das mulheres. Se, no campo, cada filho a mais representa um par de braços extra para trabalhar e gerar renda para a família, na cidade significa mais uma rubrica de despesas e um embaraço logístico a atrapalhar a carreira dos pais.

Pela experiência internacional, sempre que as meninas vão para a escola e a urbanização se amplia, a fecundidade cai. Isso ocorreu no Brasil e, ainda mais, no Irã.

O Politburo chinês provavelmente optou por manter um limite para não assumir que a política do filho único foi um erro. É possível que em breve a potência asiática se veja forçada a abraçar políticas mais ativas de estímulo à natalidade.​