domingo, 20 de setembro de 2020

Marilene Felinto Não se comem covardes, FSP

 

Extraordinário o país em que, na era da tecnologia digital, um índio isolado na Amazônia ainda mate com uma flechada o indigenista que o protegia das invasões da sociedade monstruosa. O fato em si é carregado de todos os elementos de uma tragédia.​

Não a tragédia da fantasia poética, mas a desgraça real, em que, todavia, personagens e elementos (em termos simplistas) coincidem com a literária: um herói, deuses, um sacrifício, revolta contra uma força do destino, um final triste.

Comovente demais na sua fatalidade a morte dramática do indigenista Rieli Franciscato, 56 anos, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau, da Funai (Fundação Nacional do Índio).

-
Indigenista Rieli Franciscato na base de proteção etnoambiental Bananeiras, perto do município de Seringueiras (RO), em 2016 - Karen Shiratori/Arquivo pessoal

Em 9 de setembro último, enquanto averiguava um evento de presença de indígenas fora do território de isolamento, em Rondônia, ele foi atingido pela flecha de um índio isolado yraparariquara (também conhecidos como “isolados do Cautário”, nome de um rio da região).

O índio não sabia quem era Rieli, que trabalhava em defesa dos indígenas desde a década de 1980, e que revolucionou a política de proteção aos povos isolados. Segundo o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato), Rieli, junto com outros indigenistas, elaborou metodologia inédita, garantista da autonomia desses povos de permanecerem como estão, conforme suas expressões de vontade, de vida e de bem-estar.

[ x ]

Extraordinário que o yraparariquara seja contemporâneo deste Brasil da brutalidade urbana e política. E sintomático deste “Brasil que deu errado” – como dizia Darcy Ribeiro (1922-1997) – que tal contraste, em vez de ser comemorado, respeitado, consagrado e preservado como patrimônio humano brasileiro, sirva de incentivo à destruição dos índios e de seu ambiente.

A estratégia de genocídio de indígenas está clara no governo bolsonarista, que nomeou no início deste ano um ex-missionário evangélico e militar reformado para comandar o órgão dedicado à proteção de índios isolados.

Ricardo Lopes Dias tem vínculos com a “missão” norte-americana Novas Tribos do Brasil, culto focado em povos indígenas e com táticas agressivas de assimilação, segundo o El País. Dias é também favorável à exploração econômica das terras indígenas e partidário do desmantelamento da legislação brasileira de proteção aos índios, uma das mais avançadas do mundo.

O evangélico veio se juntar – depois de afastado pelo MPF (Ministério Público Federal), por suspeita de conflito de interesses, mas reintegrado ao cargo pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em junho último – ao agrupamento de covardes bolsonaristas, chefiados pelo tal ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Eles agem pelas costas, na calada da noite, incitando garimpeiros, madeireiros, grileiros, todo tipo de invasores a destruir a floresta amazônica.

Segundo o ISA (Instituto Socioambiental), os yraparariquaras são sobreviventes dos massacres ocorridos em Rondônia desde quando o governo da ditadura militar (1964-1985) encampou um processo de colonização na região, abriu estradas e forçou o contato que levou ao extermínio de inúmeros povos indígenas.

Apesar desse histórico, os isolados do Cautário sempre tiveram comportamento pacífico, como observam indigenistas experientes, sem registro de situações de violência. E acrescentam que algo deve ter alterado o comportamento do grupo, a ponto de levá-los à reação extrema.

Esse “algo” consta das estatísticas. Também segundo o ISA, até 2018, os 86 territórios com presença de grupos isolados registravam cerca de 900 mil hectares de desmatamento.

Pois, então, quem não mataria? Quem (se conhecesse outro mundo possível) não mataria para evitar a contaminação com a barbárie da sociedade nacional? Quem não rechaçaria a ferro de flecha essas cidades-estados governadas na base da astúcia, da corrupção e da aplicação seletiva da força contra os vulneráveis, os diferentes do colonizador branco?

Quem não mataria para se defender da ameaça da assimilação, da hipocrisia da catequese (da jesuíta à praga evangélica atual), da escravidão, da submissão, das pandemias?

O Brasil é o país com mais povos indígenas isolados. O não contato é um direito legítimo deles, resistência contra o horror que deve ser o ronco do avião, o guincho da motosserra, a assombração do drone perturbando os ares da floresta.

Fossem antropófagos, como alguns de seus ancestrais, levariam os covardes como prisioneiros, mas não os comeriam. Conta Darcy Ribeiro que o explorador alemão Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás aqui na “Terra de Santa Cruz”, no século 16, “três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava pedindo clemência. Não se comia um covarde”.

Marilene Felinto

Escritora e tradutora, autora de “As Mulheres de Tijucopapo”. Mantém o site marilenefelinto.com.br

Fernanda Torres Em meio à Covid, sou bombardeada com ofertas de roupas de luxo, FSP

 No isolamento forçado da peste, as roupas acumuladas no armário mais parecem vestígios lúgubres de uma civilização extinta. Talvez, com o avanço da vacina e a tímida retomada do convívio social, algumas voltem a pegar sol; e temo que outras, nascidas para a opulência e o fausto, só sirvam mesmo para engordar as traças.

Daí a surpresa de me ver incluída na lista de freguesas da Importados Candy Fashion. Faz um mês que a loja de vestuário online bombardeia o meu Whatsapp com ofertas de roupas e calçados de luxo espaventosos, verdadeiras aberrações em meio à curva de mortes da Covid.

Se existe um denominador comum aos produtos Candy Fashion, é a presença ostensiva de logomarcas de grifes em todos os itens ofertados.

Você pode parcelar um cinto de couro da Valentino e sair desfilando o gigantesco, eu disse gigantesco vê dourado da fivela, atochado ao próprio umbigo.

E combinar o acessório com um chapéu Dior recoberto de cês e dês. Não bastasse a estampa personalizada, uma faixa com o nome da marca escrita por extenso, e em letras garrafais, arremata a costura da aba.

E porque não misturar o vê do cinto e o cê e o dê do chapéu, com uma sandália rasteirinha da Chanel, coroada pelos dois conhecidos cês em metal reluzente, que se estendem da unha ao peito do pé?

Para fechar o look, a Candy Fashion sugere uma sortida seleção de bolsas e carteiras Gucci, Fendi, Hermes e Balenciaga, nas cores azul rei, abóbora madura e amarelo cítrico, com as logomarcas, é óbvio, mais do que aparentes.

Assim montada, a cliente terá a certeza de que seu gosto diferenciado causará inveja na ralé dos sem acesso ao chiqueirinho —isso no tempo em que ainda havia chiqueirinho—, ou naqueles que respeitem um raio de distanciamento social maior ou igual a um quilômetro.

Desde que o prêt-à-porter promoveu o luxo para milhões, o fetiche em torno das maisons de alta costura agregou às suas assinaturas um valor irracional. Mas quem, em sã consciência, empenharia uma fortuna para se transformar numa femme sandwich?

Um casal de amigos meus, sim. Na época em que os brasileiros ainda podiam pisar em outros países, a dupla desembarcou em Nova York cravejada de eles e vês da Vuitton na carteira, nas capas de passaporte, nas malas e bolsas que portavam, e nos bonés, casacos e sapatos que vestiam.

A fidelidade era tamanha, que o policial do guichê de imigração gritou para os dois: “Hey, you! You from the Louis Vuitton world! Step ahead!” É preciso estar atento, o chique de ontem é a cafonalha de amanhã.

Ilustração de uma mulher correndo com vestindo vários acessórios de grife. No fundo, há uma foto de uma árvore pegando fogo.
Marta Mello/Folhapress

Antes do famigerado vírus paralisar o planeta, a moda excesso, com duas coleções anuais —já demodês, mal finda a estação —, seguia um frenético encadear de lançamentos, liquidações e vendas a retalho nos outlets.

Os que podiam, entupiam os armários já abarrotados, vendendo as sobras no Enjoei. Os menos favorecidos, ou apelavam para o Made in China, ou se afundavam em salgadas dívidas. Sei de uma moça que vendeu um apartamento para cobrir os juros acumulados dos mimos.

Não acredito que o coronavírus altere o mundo como o conhecemos. A moda, no entanto, terá que encarar o new comedimento.

Em fevereiro, quando a moléstia se abateu sobre a Itália, Giorgio Armani publicou um texto sugerindo a diminuição do número de coleções e “o fim de práticas típicas das lojas de departamento, que criaram um ciclo de entrega sem fim, com o objetivo de vender mais.”

Armani sempre defendeu um vestir-se atemporal, focado na qualidade e não no exagero. O estilista e seus pares dominam o requinte do artesanato europeu, o senso do eterno, mas se tornaram agentes do fútil desvario.

Temo pela Importados Candy Fashion. Não sei se a empresa trabalha em sistema de consignação, ou se investe de forma antecipada no assombroso estoque. Sei que tanto a sandália com o salto doze, esculpido com as iniciais de Yves Saint Laurent, quanto a galocha carimbada com um mais que legível Christian Dior no cano, estão fadadas ao examinoso encalhe.

E antes que a Miranda Priestly de Meryl Streep me passe um pito, confesso que admiro as grifes acima citadas. Aprecio a costura, o acabamento, o corte e o caimento de suas peças, e reconheço a importância dos empregos gerados pelo setor.

O problema é que a Candy Fashion privilegiou o tudo em demasia, sem prever a discrição exigida do consumo pós pandêmico.

Pantanal arde, a truculência avança... menos é mais, Candy, menos é mais.

Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.