domingo, 20 de setembro de 2020

Fernanda Torres Em meio à Covid, sou bombardeada com ofertas de roupas de luxo, FSP

 No isolamento forçado da peste, as roupas acumuladas no armário mais parecem vestígios lúgubres de uma civilização extinta. Talvez, com o avanço da vacina e a tímida retomada do convívio social, algumas voltem a pegar sol; e temo que outras, nascidas para a opulência e o fausto, só sirvam mesmo para engordar as traças.

Daí a surpresa de me ver incluída na lista de freguesas da Importados Candy Fashion. Faz um mês que a loja de vestuário online bombardeia o meu Whatsapp com ofertas de roupas e calçados de luxo espaventosos, verdadeiras aberrações em meio à curva de mortes da Covid.

Se existe um denominador comum aos produtos Candy Fashion, é a presença ostensiva de logomarcas de grifes em todos os itens ofertados.

Você pode parcelar um cinto de couro da Valentino e sair desfilando o gigantesco, eu disse gigantesco vê dourado da fivela, atochado ao próprio umbigo.

E combinar o acessório com um chapéu Dior recoberto de cês e dês. Não bastasse a estampa personalizada, uma faixa com o nome da marca escrita por extenso, e em letras garrafais, arremata a costura da aba.

E porque não misturar o vê do cinto e o cê e o dê do chapéu, com uma sandália rasteirinha da Chanel, coroada pelos dois conhecidos cês em metal reluzente, que se estendem da unha ao peito do pé?

Para fechar o look, a Candy Fashion sugere uma sortida seleção de bolsas e carteiras Gucci, Fendi, Hermes e Balenciaga, nas cores azul rei, abóbora madura e amarelo cítrico, com as logomarcas, é óbvio, mais do que aparentes.

Assim montada, a cliente terá a certeza de que seu gosto diferenciado causará inveja na ralé dos sem acesso ao chiqueirinho —isso no tempo em que ainda havia chiqueirinho—, ou naqueles que respeitem um raio de distanciamento social maior ou igual a um quilômetro.

Desde que o prêt-à-porter promoveu o luxo para milhões, o fetiche em torno das maisons de alta costura agregou às suas assinaturas um valor irracional. Mas quem, em sã consciência, empenharia uma fortuna para se transformar numa femme sandwich?

Um casal de amigos meus, sim. Na época em que os brasileiros ainda podiam pisar em outros países, a dupla desembarcou em Nova York cravejada de eles e vês da Vuitton na carteira, nas capas de passaporte, nas malas e bolsas que portavam, e nos bonés, casacos e sapatos que vestiam.

A fidelidade era tamanha, que o policial do guichê de imigração gritou para os dois: “Hey, you! You from the Louis Vuitton world! Step ahead!” É preciso estar atento, o chique de ontem é a cafonalha de amanhã.

Ilustração de uma mulher correndo com vestindo vários acessórios de grife. No fundo, há uma foto de uma árvore pegando fogo.
Marta Mello/Folhapress

Antes do famigerado vírus paralisar o planeta, a moda excesso, com duas coleções anuais —já demodês, mal finda a estação —, seguia um frenético encadear de lançamentos, liquidações e vendas a retalho nos outlets.

Os que podiam, entupiam os armários já abarrotados, vendendo as sobras no Enjoei. Os menos favorecidos, ou apelavam para o Made in China, ou se afundavam em salgadas dívidas. Sei de uma moça que vendeu um apartamento para cobrir os juros acumulados dos mimos.

Não acredito que o coronavírus altere o mundo como o conhecemos. A moda, no entanto, terá que encarar o new comedimento.

Em fevereiro, quando a moléstia se abateu sobre a Itália, Giorgio Armani publicou um texto sugerindo a diminuição do número de coleções e “o fim de práticas típicas das lojas de departamento, que criaram um ciclo de entrega sem fim, com o objetivo de vender mais.”

Armani sempre defendeu um vestir-se atemporal, focado na qualidade e não no exagero. O estilista e seus pares dominam o requinte do artesanato europeu, o senso do eterno, mas se tornaram agentes do fútil desvario.

Temo pela Importados Candy Fashion. Não sei se a empresa trabalha em sistema de consignação, ou se investe de forma antecipada no assombroso estoque. Sei que tanto a sandália com o salto doze, esculpido com as iniciais de Yves Saint Laurent, quanto a galocha carimbada com um mais que legível Christian Dior no cano, estão fadadas ao examinoso encalhe.

E antes que a Miranda Priestly de Meryl Streep me passe um pito, confesso que admiro as grifes acima citadas. Aprecio a costura, o acabamento, o corte e o caimento de suas peças, e reconheço a importância dos empregos gerados pelo setor.

O problema é que a Candy Fashion privilegiou o tudo em demasia, sem prever a discrição exigida do consumo pós pandêmico.

Pantanal arde, a truculência avança... menos é mais, Candy, menos é mais.

Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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