Extraordinário o país em que, na era da tecnologia digital, um índio isolado na Amazônia ainda mate com uma flechada o indigenista que o protegia das invasões da sociedade monstruosa. O fato em si é carregado de todos os elementos de uma tragédia.
Não a tragédia da fantasia poética, mas a desgraça real, em que, todavia, personagens e elementos (em termos simplistas) coincidem com a literária: um herói, deuses, um sacrifício, revolta contra uma força do destino, um final triste.
Comovente demais na sua fatalidade a morte dramática do indigenista Rieli Franciscato, 56 anos, coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Uru-Eu-Wau-Wau, da Funai (Fundação Nacional do Índio).
Em 9 de setembro último, enquanto averiguava um evento de presença de indígenas fora do território de isolamento, em Rondônia, ele foi atingido pela flecha de um índio isolado yraparariquara (também conhecidos como “isolados do Cautário”, nome de um rio da região).
O índio não sabia quem era Rieli, que trabalhava em defesa dos indígenas desde a década de 1980, e que revolucionou a política de proteção aos povos isolados. Segundo o OPI (Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Isolados e de Recente Contato), Rieli, junto com outros indigenistas, elaborou metodologia inédita, garantista da autonomia desses povos de permanecerem como estão, conforme suas expressões de vontade, de vida e de bem-estar.
Extraordinário que o yraparariquara seja contemporâneo deste Brasil da brutalidade urbana e política. E sintomático deste “Brasil que deu errado” – como dizia Darcy Ribeiro (1922-1997) – que tal contraste, em vez de ser comemorado, respeitado, consagrado e preservado como patrimônio humano brasileiro, sirva de incentivo à destruição dos índios e de seu ambiente.
A estratégia de genocídio de indígenas está clara no governo bolsonarista, que nomeou no início deste ano um ex-missionário evangélico e militar reformado para comandar o órgão dedicado à proteção de índios isolados.
Ricardo Lopes Dias tem vínculos com a “missão” norte-americana Novas Tribos do Brasil, culto focado em povos indígenas e com táticas agressivas de assimilação, segundo o El País. Dias é também favorável à exploração econômica das terras indígenas e partidário do desmantelamento da legislação brasileira de proteção aos índios, uma das mais avançadas do mundo.
O evangélico veio se juntar – depois de afastado pelo MPF (Ministério Público Federal), por suspeita de conflito de interesses, mas reintegrado ao cargo pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) em junho último – ao agrupamento de covardes bolsonaristas, chefiados pelo tal ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente. Eles agem pelas costas, na calada da noite, incitando garimpeiros, madeireiros, grileiros, todo tipo de invasores a destruir a floresta amazônica.
Segundo o ISA (Instituto Socioambiental), os yraparariquaras são sobreviventes dos massacres ocorridos em Rondônia desde quando o governo da ditadura militar (1964-1985) encampou um processo de colonização na região, abriu estradas e forçou o contato que levou ao extermínio de inúmeros povos indígenas.
Apesar desse histórico, os isolados do Cautário sempre tiveram comportamento pacífico, como observam indigenistas experientes, sem registro de situações de violência. E acrescentam que algo deve ter alterado o comportamento do grupo, a ponto de levá-los à reação extrema.
Esse “algo” consta das estatísticas. Também segundo o ISA, até 2018, os 86 territórios com presença de grupos isolados registravam cerca de 900 mil hectares de desmatamento.
Pois, então, quem não mataria? Quem (se conhecesse outro mundo possível) não mataria para evitar a contaminação com a barbárie da sociedade nacional? Quem não rechaçaria a ferro de flecha essas cidades-estados governadas na base da astúcia, da corrupção e da aplicação seletiva da força contra os vulneráveis, os diferentes do colonizador branco?
Quem não mataria para se defender da ameaça da assimilação, da hipocrisia da catequese (da jesuíta à praga evangélica atual), da escravidão, da submissão, das pandemias?
O Brasil é o país com mais povos indígenas isolados. O não contato é um direito legítimo deles, resistência contra o horror que deve ser o ronco do avião, o guincho da motosserra, a assombração do drone perturbando os ares da floresta.
Fossem antropófagos, como alguns de seus ancestrais, levariam os covardes como prisioneiros, mas não os comeriam. Conta Darcy Ribeiro que o explorador alemão Hans Staden, prisioneiro dos tupinambás aqui na “Terra de Santa Cruz”, no século 16, “três vezes foi levado a cerimônias de antropofagia e três vezes os índios se recusaram a comê-lo, porque chorava e se sujava pedindo clemência. Não se comia um covarde”.
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