terça-feira, 15 de setembro de 2020

Eleição em Guarulhos tem apostas para drama da água e conflito sobre obras antigas, FSP

 Géssica Brandino

SÃO PAULO

A disputa pela Prefeitura de Guarulhos, segunda maior cidade do estado de São Paulo, com cerca de 1,4 milhão de habitantes, deve reeditar o pleito de 2016 num contexto diferente daquele que interrompeu um ciclo de 16 anos do PT na cidade.

O ex-prefeito Elói Pietá (PT), que comandou o município de 2001 a 2008, tentará impedir a reeleição de Gustavo Henric Costa (PSD). No último pleito, a rejeição ao Partido dos Trabalhadores deixou o político fora até mesmo do segundo turno.

O segundo colocado há quatro anos foi o hoje deputado federal Eli Corrêa Filho (DEM-SP), que será o cabo eleitoral da esposa, a empresária Fran Corrêa (PSDB), candidata em 2020. Estreante nas urnas, a tucana conseguiu formar o maior arco de alianças, com outras sete siglas, incluindo um vice do PDT e o apoio do PSL.

Pietá torce pela presença do ex-presidente Lula na campanha, que pode entrar em cena caso o cenário da pandemia melhore. Ao longo da gestão petista no governo federal várias obras foram realizadas na cidade, o que Pietá pretende usar como trunfo.

O escolhido ou a escolhida pela população terá pela frente desafios na área de infraestrutura e outros problemas agravados pela pandemia, como o atendimento na saúde —área que os três elencam como prioritária— e a geração de empregos.

Eleito prefeito mais jovem da cidade, aos 31 anos, Guti, como é conhecido, diz que dedicou sua gestão à “reconstrução da cidade”—algo que os adversários contestam.

Finalizou obras paradas e afirma ter equilibrado as contas públicas. Ele diz que isso dará fôlego para novas construções, caso seja reeleito. Entre suas promessas está a ampliação do número de UBSs (Unidades Básicas de Saúde).

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Seu maior legado até agora é ter conseguido um acordo para resolver o problema crônico do rodízio de água.

No primeiro ano e meio de gestão, em 2017, ele afirma ter tentado um acordo com o então governador Geraldo Alckmin (PSDB) para a dívida de R$ 3,5 bilhões da empresa municipal de água com a estatal estadual Sabesp.

As tentativas fracassaram, e o caminho foi negociar um novo contrato de concessão de 40 anos com a empresa, assinado em dezembro de 2018, que tirou a dívida da conta do município.

Um ano e meio depois, o prefeito afirma que a cidade está livre do rodízio, e isso deve marcar seu discurso na busca pela reeleição. “Tínhamos 92% do território guarulhense com rodízio de água. Hoje, 100% de Guarulhos tem água todos os dias. É uma questão relevante que conseguimos resolver”, diz Guti.

Há moradores que criticam a mudança. O estudante de pedagogia Emerson Dutra, 29, diz que em Cidade Tupinambá, no bairro Pimentas, ao lado da rodovia Ayrton Senna, o fornecimento de água piorou e ficou mais caro. Ele também reclama da falta de limpeza dos bueiros, o que faz com que a cada chuva o esgoto invada a viela, onde ele mora.

Guarulhos é o quinto município entre as 100 cidades mais populosas do país que menos investe em tratamento de esgoto em termos de arrecadação, segundo levantamento do Instituto Trata Brasil, de 2018.

O presidente-executivo do instituto, Édison Carlos, diz que a cidade tem melhorado suas políticas de saneamento. Segundo o atual prefeito, o município deve fechar 2020 com 40% do esgoto tratado. Atualmente, o total é de 15%.

O historiador e contista Elton Soares de Oliveira, 59, viu a melhoria na distribuição da água no bairro do Taboão, onde vive com a família há 25 anos. Porém, diz que resta resolver os alagamentos que tomam a praça 8 de dezembro, local de entroncamento de várias vias da região, deixando os moradores presos em casa.

"Não precisa muita chuva para acontecer [alagamento]. A última vez foi agora, em junho", diz. Segundo ele, os comerciantes precisaram adicionar comportas para tentar conter as enchentes, problema que se agravou a partir da década de 1980, conforme se intensificou o processo de impermeabilização da cidade.

Senhor de óculos e cabelos brancos com os braços sobre a mesinha de uma praça, que tem no meio um tabuleiro de xadrez
Elton Soares de Oliveira, historiador e morador do bairro Taboão, afetado há anos por alagamentos em Guarulhos. A praça 8 de dezembro fica coberta pela água - Danilo Verpa/Folhapress

Até o final de 2020, a prefeitura estima concluir uma obra de drenagem no Taboão e o recapeamento de asfalto numa área de 18 mil metros quadrados para tentar resolver o problema.

A 4 km da praça 8 de dezembro, no bairro Cidade Serodio, próximo ao aeroporto de Cumbica, a auxiliar de enfermagem aposentada Aparecida Alves, 60, diz também conviver com alagamentos há duas décadas.

“Quando comprei o terreno da minha casa, não tinha enchente. Depois, fizeram muita construção, estacionamentos, e quando chove, alaga. Na minha casa já entrou água umas cinco vezes.”

Na primeira semana de setembro, o prefeito Guti afirma ter fechado o apoio da Corporação Andina de Fomento —instituição internacional multilateral de desenvolvimento da América Latina. O acordo prevê R$ 516 milhões para a macrodrenagem do rio Baquirivu-Guaçu.

De acordo com o político, as obras têm o potencial de impactar 300 mil pessoas, que “não vão ter mais suas casas invadidas pela água.”

Praça tomada pela água turva, que encobre parte de uma árvore
Alagamento na Praça 8 de Dezembro, em Guarulhos - Reprodução

Além da questão da água, outro gargalo da cidade é a mobilidade urbana. O diretor do Ciesp (Centro das Indústrias do Estado de São Paulo) de Guarulhos, Maurício Colin, diz que esse é um problema que afeta o deslocamento de funcionários e a logística das empresas.

“O caos de Guarulhos se chama trevo de Bonsucesso. Há carros que ficam duas horas para rodar 1,5 quilômetro”, diz.

O trevo liga os dois bairros mais populosos do município, Pimentas e Bonsucesso, que são cortados pela rodovia Presidente Dutra. Iniciada em 2014, na gestão do petista Sebastião Almeida como extensão de um projeto do governo de Pietá, a obra ainda não foi concluída.

Emerson conta que em dias de trânsito e chuva, o trajeto de ônibus pelo local chega a levar 1 hora e meia. Em dias sem trânsito, 30 minutos.

“Como não houve obras de infraestrutura importantes nos últimos seis anos, as coisas se complicaram em todas as grandes regiões", resume o candidato petista Pietá. Ele diz ter a área como uma de suas prioridades.

Uma mulher negra usando mascara posando para foto com os braços apoiados no corrimão de uma escada. Atras dela, um canteiro verde e outras escadarias
Gisele Trevas, 41 anos, moradora do bairro do CECAP, em Guarulhos. É usuária do transporte público e reclama que linhas da EMTU que ligavam o bairro à capital foram cortadas na pandemia - Danilo Verpa/Folhapress

O transporte público é motivo de queixa dos eleitores. Moradora do Cecap, a executiva de contas Gisele Trevas, 41, classifica o serviço como péssimo, pelo intervalo entre as linhas e lotação.

Antes da pandemia, para se deslocar para a Vila Mariana (zona sul de São Paulo), onde trabalha, ela usava uma linha expressa da EMTU até o Tietê. O trajeto era mais rápido do que o pela linha da CPTM, inaugurada em 2018, que não atende aos bairros mais populosos e não para no terminal do aeroporto.

Com a pandemia, porém, três linhas que ligavam o Cecap à capital paulista foram retiradas. Após um abaixo-assinado dos moradores, apenas uma voltou, mas operando num trajeto mais longo, com veículos cheios, diz Gisele. Com isso, a guarulhense conta que tem recorrido ao aplicativo para conseguir levar os pais idosos ao médico na capital.

A candidata Fran Corrêa, do PSDB, critica a cobrança de valores diferentes de usuários do transporte com cartão (tarifa de R$ 4,45) e no dinheiro (R$ 4,70). Ela promete rever contratos das empresas.

Para Pietá, é preciso integrar o sistema local ao metropolitano e assim resolver o problema da sobreposição de linhas. “Vamos fazer um esforço para o governo do estado para mudar isso. Não tem sentido ter os dois sistemas não se conversando", diz.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Lava Jato denuncia Lula, Palocci e Paulo Okamotto por lavagem de R$ 4 milhões da Odebrecht, OESP

 Paulo Roberto Netto

14 de setembro de 2020 | 16h56

A força-tarefa da Lava Jato no Paraná denunciou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por lavagem de R$ 4 milhões em propinas da Odebrecht repassadas a título de doações oficiais ao Instituto Lula, entre dezembro de 2013 e março de 2014. O ex-ministro da Fazenda, Antônio Palocci, e o presidente do instituto, Paulo Okamotto, também foram denunciados.

É a quarta denúncia da Lava Jato Paraná contra Lula, a segunda relacionada ao instituto que leva o nome do ex-presidente e a primeira movida pelo novo coordenador da força-tarefa paranaense, Alessandro José Fernandes de Oliveira, que substituiu Deltan Dallagnol no comando do grupo no início deste mês. A peça foi enviada na última sexta, 11, ao juiz Luiz Antônio Bonat, da 13ª Vara Federal de Curitiba, que decidirá se aceita ou não a denúncia.

De acordo com os procuradores, Marcelo Odebrecht teria autorizado o pagamento de R$ 4 milhões a Lula que seriam quitados da subconta ‘amigo’, associada ao petista, listada na planilha ‘Italiano’ do Setor de Operações Estruturadas da empreiteira.

Para ‘lavar’ a propina, os repasses foram contabilizados como doações oficiais ao Instituto Lula, quitadas em quatro parcelas de R$ 1 milhão. Segundo a Lava Jato, a denúncia é embasada em e-mails e planilhas apreendidas em buscas feitas em fases anteriores da operação, além das delações de Marcelo Odebrecht e Antônio Palocci.

Em nota, a defesa de Lula classificou a denúncia como uma ‘invenção’ da força-tarefa. “Tais doações, que a Lava Jato afirma que foram ‘dissimuladas’, estão devidamente documentadas por meio recibos emitidos pelo Instituto Lula — que não se confunde com a pessoa do ex-presidente — e foram devidamente contabilizadas”, afirmou o criminalista Cristiano Zanin Martins.

Os procuradores afirmam que comunicações obtidas pela força-tarefa indicam que Marcelo Odebrecht informou o diretor do departamento de propinas da empreiteira, Alexandrino Alencar, com cópia para o supervisor do setor, Hilberto Silva, que Okamotto entraria em contato para acertar uma doação oficial ao Instituto Lula, que seria debitada da subconta de propinas ‘amigo’.

“Italiano (Palocci) disse que o Japonês (Okamotto) vai lhe procurar para um apoio formal ao Ins. (Instituto Lula) de 4M (não se todo este ano, ou 2 este ano e 2 no outro)”, escreveu Marcelo Odebrecht a Hilberto Silva. O 4M significa R$ 4 milhões. “Vai sair de um saldo que amigo de meu pai (Lula) ainda tem comigo de 14 (coordenar com HS no que tange ao Credito) mas com MP no que tange ao discurso pois será formal”.

MP seria o responsável pela comunicação da empreiteira, que alinharia o discurso de que os repasses eram lícitos, segundo a Lava Jato. A sigla HS é de Hilberto Silva, supervisor do departamento de propinas.

O e-mail de Marcelo foi enviado no dia 26 de novembro de 2013 – duas semanas depois, em 16 de dezembro de 2013, a primeira doação foi feita ao Instituto Lula. Os pagamentos continuaram em 31 de janeiro de 2014 e 05 e 31 de março do mesmo ano.

O registro de pagamentos da Odebrecht também constaria em planilhas apreendidas com Okamotto durante a 24ª fase da Lava Jato, a Aletheia.

O ex-presidente Lula discursa no Geneva Press Club, na Suíça. Foto: Fabrice Coffrini / AFP

Denúncias. A nova denúncia contra Lula é a quarta apresentada pela Lava Jato Paraná desde o início das investigações, em 2014. As últimas três colocaram o petista no banco dos réus por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, e duas resultaram em condenações já validas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).

A primeira condenação de Lula foi imposta pelo então juiz Sérgio Moro em julho de 2017 no âmbito da ação sobre o triplex do Guarujá – o imóvel teria recebido reformas pagas pela empreiteira OAS como uma ‘benesse’ ao petista. A pena inicial de nove anos e seis meses de prisão foi aumentada pelo TRF-4 para 12 anos e um mês de prisão em janeiro de 2018. Em abril do ano passado, o STJ confirmou a sentença, mas reduziu a pena para oito anos e dez meses.

A segunda condenação, já validada em segunda instância, é até o momento a mais dura imposta ao petista: 17 anos e um mês de prisão. A pena foi decretada pelo TRF-4 na ação penal que mirou reformas pagas pelas empreiteiras Odebrecht e OAS em um sítio em Atiabaia (SP), que está em nome de Fernando Bittar, filho do amigo de Lula e ex-prefeito de Campinas, Jacó Bittar.

A terceira denúncia contra Lula, que também mira o Instituto do ex-presidente, ainda aguarda uma sentença que deverá ser proferida pelo substituto de Moro, Luiz Antônio Bonat, da 13ª Vara Federal de Curitiba. O processo se encaminha para as alegações finais – movimentação que antecede a sentença – pela segunda vez.

No ano passado, o ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal, determinou que o prazo para as manifestações fosse reaberto após a Corte firmar o entendimento que delatados – como Lula – tem o direito de se pronunciarem nos autos depois dos delatores. O prazo foi reaberto mais uma vez após o ministro Ricardo Lewandowski conceder a Lula o direito de acessar o acordo de leniência – delação de empresas – da Odebrecht que embasa parte das acusações no caso.

COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA CRISTIANO ZANIN MARTINS, QUE DEFENDE O EX-PRESIDENTE LULA

Após STF reconhecer ilegalidades, Lava Jato inventa nova denúncia contra Lula

Nota da Defesa do ex-Presidente Lula

A defesa do ex-presidente Lula foi surpreendida por mais uma denúncia feita pela Lava Jato de Curitiba sem qualquer materialidade e em clara prática de lawfare. A peça, também subscrita pelos procuradores que recentemente tiveram suas condutas em relação a Lula analisadas pelo CNMP após 42 adiamentos — e foram beneficiados pela prescrição —, busca criminalizar 4 doações lícitas feitas pela empresa Odebrecht ao Instituto Lula entre 2013 e 2014. Tais doações, que a Lava Jato afirma que foram “dissimuladas”, estão devidamente documentadas por meio recibos emitidos pelo Instituto Lula — que não se confunde com a pessoa do ex-presidente — e foram devidamente contabilizadas.

A Lava Jato mais uma vez recorre a acusações sem materialidade contra seus adversários, no momento em que a ilegalidade de seus métodos em relação a Lula foi reconhecida recentemente em pelo menos 3 julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal. No caso do uso da delação de Palocci em processos contra Lula às vésperas das eleições presidenciais de 2018, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, também identificou possível motivação política do ato, além da própria ilegalidade. Para além disso, o mesmo tema tratado na nova denúncia já é objeto de outra ação penal aberta pela mesma Lava Jato de Curitiba contra Lula, que foi recentemente sobrestada por decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, acolhendo pedido da defesa do ex-presidente.

O excesso de acusações frívolas (overcharging) e a repetição de acusações são táticas de lawfare, com o objetivo de reter o inimigo em uma rede de imputações, objetivando retirar o seu tempo e macular sua reputação.

A denúncia acusa Lula e outras pessoas pela prática de lavagem de dinheiro, partindo da premissa de que o ex-presidente integraria uma organização criminosa. No entanto, Lula já foi absolvido de tal acusação pela 12ª. Vara Federal de Brasília, por meio de decisão que se tornou definitiva (transitada em julgado) e que apontou fins políticos na formulação da imputação. Nos contratos da Petrobras referidos na denúncia não há qualquer ato praticado por Lula (ato de ofício), assim como não há qualquer conduta imputada ao ex-presidente que tenha sido definida no tempo e no espaço, mesmo após 5 anos de investigação.

Essa nova investida da Lava Jato contra Lula reforça a necessidade de ser reconhecida a suspeição dos procuradores de Curitiba em relação ao ex-presidente, que está pendente de análise no Supremo Tribunal Federal, assim como a necessidade de ser retomado o julgamento da suspeição do ex-juiz Sergio Moro — a fim de que os processos abertos pela Lava Jato de Curitiba em relação a Lula sejam anulados.

Cristiano Zanin Martins

COM A PALAVRA, O CRIMINALISTA FERNANDO FERNANDES, QUE DEFENDE PAULO OKAMOTTO

Paulo Okamotto jamais tratou de propina ou de ilegalidades com ninguém, e muito menos com Palocci, com Marcelo Odebrecht. Já foi absolvido em processo sobre doação ao Instituto Lula, e teve parecer favorável antes disso da Procuradoria da República para o trancamento da ação em razão da Lei 9.394/91 assentar que o arquivo presidencial é “patrimônio cultural brasileiro”. O objetivo social do Instituto é a preservação da memória e do arquivo, assim como de Fernando Henrique e de Obama. O Ministério Público de Curitiba repete a mesma ilegalidade. A defesa espera que não seja recebida essa repetição de fatos jurídicos já apreciados com nova roupagem.

Fernando Fernandes
Advogado de Paulo Okamotto e do Instituto Lula


Legalizar drogas sem dar alternativas a jovens é armadilha, diz neurocientista, FSP

 


SÃO PAULO

Judy Grisel, 57, decidiu estudar neurociência porque acreditava que, entendendo como as drogas agem no cérebro, poderia resolver o quebra-cabeça da dependência química –inclusive a da sua própria.

Dos 13 aos 23 anos, ela usou várias substâncias que causam adição, do álcool à maconha, cocaína e opioides. Em recuperação há mais de três décadas, a neurocientista da Universidade Bucknell, nos EUA, diz com todas as letras em seu livro “Never Enough” (Nunca é Suficiente, em inglês; ed. Doubleday, 2019) que ainda não conseguiu –nem ela, nem ninguém– solucionar a dependência química.

Apesar disso, estudos feitos por ela e por outros cientistas têm ajudado a entender cada vez melhor os mecanismos pelos quais as drogas atuam no cérebro.

Grisel não está otimista em relação aos efeitos da pandemia no uso de substâncias que causam dependência. Ela acha que podem aumentar o abuso de álcool e de benzodiazepínicos. “Estamos todos precisando mais e mais nos medicar”, diz.

A sra. diz em seu livro que queria resolver o problema da dependência estudando o cérebro, mas que nem a sra. nem ninguém conseguiu isso ainda. Por que esse problema é tão complexo? A adição não é um jogo justo. Temos a ideia de que todos tivemos as mesmas oportunidades, mas há grandes diferenças genéticas e biológicas. O estresse na infância e outras coisas têm um papel em como nosso cérebro reage. Algumas pessoas têm uma chance maior de se tornarem dependentes antes mesmo de experimentarem qualquer coisa.

Alguns têm sorte porque simplesmente não gostam dos efeitos das drogas. Enquanto para outros, uma vez que são expostos a um entorpecente, a parte racional do cérebro simplesmente fica offline e a parte compulsiva toma a dianteira.

A sra. afirma que a recuperação hoje não é mais frequente do que era há 50 anos. Por que a pesquisa e a prática clínica da recuperação de dependentes não avançaram? Nós temos tratamentos com base científica que funcionam. Para pessoas que têm acesso a eles, existe uma chance maior, sim, de que se recuperem. Sabemos como ajudá-las, mas isso custa dinheiro e tempo, e são necessários profissionais treinados. Não temos esses elementos em quantidade suficiente. Enquanto isso, a prevalência do uso de drogas segue crescendo pelo mundo.

Por que adictos levados para tratamento em uma clínica conseguem ficar sóbrios nesse contexto, mas quando expostos a situações em que usavam drogas têm recaídas? O ambiente e o contexto são grandes fatores nas recaídas, porque seu cérebro acha que você vai usar e “se prepara” para isso, criando o efeito contrário e fazendo com que você se sinta péssimo.

Em um lugar novo, sem ninguém que você conhece, é mais fácil, de certa forma, ficar sóbrio. Um exemplo é o que aconteceu com soldados americanos no Vietnã: alguns ficaram dependentes de opioides quando estavam lá, mas muitos, ao voltarem, não usaram mais, em boa parte porque o ambiente era completamente diferente.

O segundo grande fator para recaídas é tomar qualquer outra substância que cause dependência, porque todas ativam os mesmos caminhos no cérebro. É por isso que minha amiga que começou a fumar maconha para deixar de beber eventualmente começou a beber de novo. A substituição de uma droga por outra não funciona, porque são intercambiáveis no cérebro de muitas formas. E o terceiro fator é o estresse, que faz tanto humanos quanto animais quererem se medicar.

Por isso é que eu acho que esses tempos [de pandemia] vão acabar sendo tão ruins. A venda de álcool está aumentando, e não são os alcoólatras que estão bebendo mais; são pessoas que estavam lidando bem com a vida sem Covid-19, sem essa loucura toda, e agora estão bebendo. E algumas delas vão se tornar alcoólatras. Estamos todos precisando mais e mais nos medicar.

Judy Grisel, neurocientista da Universidade Bucknell (EUA), que estuda os efeitos das drogas no cérebro
Judy Grisel, neurocientista da Universidade Bucknell (EUA), que estuda os efeitos das drogas no cérebro - Divulgação

Algumas drogas imitam substâncias que nosso próprio cérebro produz, como endocanabinoides e endorfinas. Pode explicar como isso funciona? Qualquer droga que atua no cérebro só consegue acelerar ou desacelerar o que o próprio cérebro já faz. A química das drogas tem a ver com formas; para ter algum efeito no cérebro, uma substância tem que ter um formato que o cérebro reconheça.

Algumas drogas são reconhecidas no cérebro porque imitam um composto natural. Por exemplo, no caso da maconha, nós temos nossos próprios compostos parecidos com o THC, só que em doses bem pequenas, então o efeito é diferente. Temos uma farmácia interna incrível de vários tipos de opioides, que nos ajudam a sobreviver e a nos desenvolver. Eles nos ajudam a suportar os dias estressantes ou longos, o frio, a fome, os barulhos. Todos os desconfortos de viver estão sempre sendo modulados por esses opioides naturais.

Uma coisa boa dessas duas drogas é que, como há uma analogia muito próxima entre o composto que tomamos para nos drogar e o que o nosso cérebro produz, a recuperação é muito profunda e funciona bem [quando se para de tomá-los], porque eles não danificam o cérebro. Se você usar heroína e viver até os 110 anos, seu cérebro seria normal. O mesmo com a maconha, ela não é neurotóxica.

Outras drogas funcionam também acelerando ou desacelerando processos no cérebro, mas de uma forma menos fácil de entender. Os estimulantes como cocaína e anfetamina aceleram atividades no cérebro que têm a ver com ficar alerta e sentir prazer, mas fazem isso de uma forma que não se parece com o que acontece naturalmente.

Eles danificam o cérebro, então parar de tomá-los não é totalmente reparador. O álcool também é neurotóxico; ele acelera algumas coisas e desacelera outras, é uma droga muito complicada.

Se você perguntar a alguém que está usando drogas regularmente, a pessoa vai falar que é a única forma que ela se sente normal. Se você a tira, a pessoa se sente péssima.

Mas se ela esperar o suficiente, passa a perceber, “olha, não é tão ruim [ficar sem usar]”. Porque ela volta a ter o próprio fornecedor de drogas dentro do cérebro e pode se sentir bem novamente. As doses não são as mesmas, claro, é mais sutil, mas isso não é necessariamente algo ruim. Eu, por exemplo, estou começando a gostar da sutileza.

Um médico que trata dependentes me disse que muitos têm medo dos sintomas físicos da abstinência, mas que o que vem depois, o estresse de lidar com família, emprego, contas a pagar, é mais difícil e muitas vezes leva a recaídas. A sra. acha que isso seja verdade? Sim, por isso precisamos de apoio a longo prazo para dependentes. Se você tem uma deficiência física, por exemplo, nós não te damos uma muleta e falamos boa sorte, tchau. Você precisa de ajuda para aprender a viver.

Há modelos de sucesso para tratamento de dependência que começam tratando os sintomas físicos e depois seguem com apoio à saúde mental, tratamento bucal, emprego. Você não vai começar com um emprego estressante de 40 horas por semana, mas há coisas que você pode fazer.

Como sociedade, colocamos muita ênfase no início do tratamento, mas no final dele você está basicamente sozinho. No final precisamos de mais, não de menos incentivos. Há milhões de razões para a recaída e não há tantas razões para continuar sóbrio. Se a gente deixar as pessoas em um vácuo, esse vácuo será preenchido pelas dificuldades da vida e elas vão ter recaídas.

Nos EUA, muita gente acha que o uso de opioides vai cair e outra droga ocupará esse espaço, talvez metanfetamina ou cocaína. A sra. acha que existam ciclos com as drogas, e que eles tenham a ver com o contexto social? Eu acho que a pandemia vai jogar contra o uso de metanfetamina, porque ela faz você ficar paranoico e o mundo já está bem assustador. Acho que o próximo ciclo será a volta dos benzodiazepínicos, porque passamos por um momento que pede sedação. Mas é claro que usá-los só vai piorar as coisas.

Se você olhar para a história da humanidade, se você tem memória, as notícias sobre as epidemias de drogas são gotas no oceano da adição. Se todas as drogas que existem agora fossem apagadas da face da Terra, acharíamos uma nova, porque sempre existirá uma vontade de escapar ou de tornar sua experiência mais interessante.

Qual sua opinião sobre legalizar drogas? Por um lado, eu sei bem que o álcool e a nicotina matam milhões de pessoas, são legais, e não há chance no mundo de que deixem de ser. Então, do ponto de vista lógico, parece totalmente hipócrita ser contra a legalização.

Por outro lado, acho que, se tornarmos tudo legal, o uso vai aumentar, e se não houver mais fundos para educação, prevenção e intervenção, vai ser ruim. Acho que é uma armadilha para quem tem 18 anos, sabe? Você não tem chance de achar um emprego, de ter uma ocupação criativa, de comprar uma casa, mas temos aqui um pó que vai te deixar feliz. Acho que, se não fizermos nada além de tornar o pó legal, o uso vai aumentar.

Por outro lado, podemos falar, olha, tem esse pó, é legal, mas causa dependência, vai te custar muito. Você é livre para experimentá-lo, mas temos essas outras opções: você quer estudar? Quer viajar? Trabalhar no Service Corps [programa que treina jovens para trabalhar em organizações do 3o setor nos EUA] e ganhar um dinheiro, economizar para comprar um carro, para o seu futuro? Nisso é que deveríamos investir. Então eu acho que não, não deveríamos legalizar nada porque não aprendemos nossa lição.

Por que a sra. acha que sua própria recuperação teve sucesso, quando tantos outros não tiveram? A principal coisa que eu tinha era esperança de um futuro melhor. Eu tive sorte de passar por um centro de tratamento bom, com clínicos competentes, depois pude estudar sem ficar muito endividada, sem passar fome, porque eu tinha recursos. Tive terapeutas, um ambiente sem muitos dependentes em volta... E tive oportunidades. Então eu atribuo meu sucesso a tudo que estava fora de mim.

Para muitos dependentes, não há esperança. Você fala 'olha, deixe de usar a única coisa que te traz alegria, aí você pode trabalhar numa lanchonete dez horas por dia por um salário mínimo e nunca sair disso'. Ninguém vai querer.

Todos nós temos, em nossa essência, o desejo de contribuir. Se você pegar a maioria dos adolescentes de 15 anos, eles não acham que há muita esperança para eles, para o seu desenvolvimento. Isso é uma receita para a dependência.

Os jovens querem contribuir, querem pertencer, querem fazer algo que importa, seja batalhar por uma causa, construir casas para quem precisa, cuidar de crianças... E nós não damos a eles essas oportunidades.


Judy Grisel

Professora de psicologia da Universidade Bucknell, na Pensilvânia (EUA), estuda as diferenças inatas que afetam a propensão à adição; tem mestrado e doutorado em neurociência comportamental e psicologia pela Universidade do Colorado (EUA) e é autora do livro “Never Enough: The Neuroscience and Experience of Addiction”.


SAIBA COMO AGEM ALGUMAS DROGAS QUE CAUSAM DEPENDÊNCIA

Álcool 

Desacelera a atividade neurológica em várias partes do cérebro, reduzindo inibições, causando sensações de prazer e, em altas doses, causando sedação

Canabinoides 
Maconha, haxixe

Modula a atividade das sinapses em várias partes do cérebro, fazendo com que o usuário experimente atividades cotidianas como mais interessantes ou enriquecedoras

Opioides 
Heroína, fentanil, oxicodona

Substituem as endorfinas produzidas pelo próprio cérebro, causando analgesia (ausência de dor) e sensações de bem-estar

Tranquilizantes 
Barbitúricos (pentobarbital, tiopental), benzodiazepínicos (diazepam, lorazepam)

Atuam no receptor GABA, reduzindo a atividade de neurotransmissores, levando a sensações de menor ansiedade e maior relaxamento

Estimulantes 
Cocaína, anfetamina, MDMA

Impedem a “reciclagem” de neurotransmissores como dopamina e serotonina, causando sensações de alegria e energia

Apoiado por financiamento da Open Society Foundations