segunda-feira, 11 de maio de 2020

Agronegócio foi da ala dos passageiros para a cabine do avião brasileiro, FSP

Restrições da Covid-19 criam oportunidade para o Brasil fazer 'diplomacia da soja'

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O Centro-Oeste vive numa realidade paralela. Dos lobistas que acompanharam Bolsonaro na procissão ao STF, nenhum representava os interesses da região.
Os seus estados constam entre os mais eficientes na luta contra a pandemia, que tem no sul-mato-grossense Luiz Henrique Mandetta (DEM) umas de suas raras lideranças nacionais.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), personifica a ideia de que a defesa da quarentena não é uma questão de ideologia, mas de matéria cinzenta.
É possível relacionar o dinamismo político com a pujança da economia local, dominada pelo agronegócio.
Os primeiros meses da pandemia aceleraram a ultrapassagem da indústria petrolífera pelo agronegócio como motor das exportações, um marco na história econômica do país.
O recente desabamento do preço do barril do petróleo acabou com a fantasia de um Petro-Estado brasileiro, transformada em delírio coletivo no auge do pré-sal. Provavelmente a última esperança do Rio de Janeiro de romper com o seu destino machadiano de balneário decadente.
Enquanto isso, o Centro-Oeste segue ocupando o espaço deixado pelo Sudeste. Com o PIB atrelado ao da China, a região deve rebentar devido a uma nova tendência: as inevitáveis medidas de restrição das exportações nos países industrializados vão criar uma explosão na procura por alimentos no mundo em desenvolvimento.
Depois de ouvir Emmanuel Macron falar na importância da “soberania alimentar”, a ONU alertou para o risco de aumento dramático da fome.
Um chanceler digno desse nome posicionaria o Brasil na linha da frente da luta pela segurança alimentar. Entre muitas outras iniciativas, o Itamaraty abriria um novo capítulo nas relações com África, futuro celeiro da terra, com uma agenda de industrialização da agricultura.
Se a China dominou o primeiro tempo da pandemia com a “diplomacia das máscaras”, o Brasil teria uma palavra a dizer no segundo tempo com a “diplomacia da soja”, um gol fácil de “soft power”.
Mas o Brasil não tem um chanceler, apenas um sujeito que passa o dia conspirando contra inimigos nas redes sociais e contra a saúde dos brasileiros na ONU.
Numa ironia para o setor que mais entusiasticamente apoiou o candidato Bolsonaro, o agronegócio vai continuar crescendo a despeito do governo, responsável por uma dupla traição a seus interesses: a demonização do Brasil na arena ambiental e a destruição das relações com a China.
Os dois principais obstáculos ao crescimento do setor nos últimos anos, bem à frente da guerra comercial sino-americana.
Com o passe livre em 2022, o agronegócio terá um estatuto completamente diferente nas próximas eleições. O setor deverá ser incorporado na nova agenda diplomática, que terá como objetivo emergencial a reabilitação da imagem do Brasil.
Para isso, os seus gestores terão de se adequar a novas exigências internacionais de alimentação saudável e de respeito ao meio ambiente.
Os presidenciáveis não poderão se contentar com a cooptação incondicional do setor. Afinal, o agronegócio transitou da ala dos passageiros para a cabine do avião brasileiro.
Mathias Alencastro
Pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e doutor em ciência política pela Universidade de Oxford (Inglaterra).

OPINIÃO Expressa a opinião do autor do texto LAURA SCHERTEL MENDES Um direito fundamental para o século 21, FSP

Laura Schertel Mendes
Foi-se o tempo das antigas listas telefônicas de papel. E com ele se foi também uma visão antiga do direito à privacidade, de que somente os dados mais íntimos e sensíveis mereceriam proteção constitucional.
Essa ideia, que se extrai do voto da ministra Cármen Lúcia, sintetiza a controvérsia que se instalou no Supremo Tribunal Federal (STF) nos dias 6 e 7 de maio. Seria o levantamento de nome, endereço, telefone fixo e celular de 140 milhões de brasileiros algo tão inofensivo que não mereceria qualquer proteção constitucional, bastando para a sua coleta uma vaga medida provisória sem garantias concretas de proteção? Ou poderia tal coleta e a formação de um banco de dados estruturado colocar em risco as liberdades dos cidadãos?

Laura Schertel Mendes - Professora da Universidade de Brasília e do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), é doutora pela Universidade Humboldt de Berlim
A advogada Laura Schertel Mendes, professora da Universidade de Brasília e do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público) - Divulgação
A resposta do STF foi contundente. Com a maioria de dez votos, o tribunal declarou a inconstitucionalidade da medida provisória 954. Demonstrou, assim, que está sensível aos novos desafios que as tecnologias de processamento de dados apresentam aos direitos fundamentais e à própria democracia.
O julgamento foi importante, em primeiro lugar, por reconhecer que não há dados neutros ou insignificantes no contexto atual de processamento de dados. Hoje, todos os passos do nosso cotidiano são acompanhados por um smartphone, notebook ou assistentes virtuais. Qualquer dado que leve à identificação de uma pessoa pode, assim, ser usado para a formação de perfis informacionais de grande valia para o mercado e para o Estado, como se lê no voto da ministra relatora Rosa Weber. O que se poderia dizer então do número de celular, que, nas palavras da Anatel, constitui verdadeira chave de acesso a milhões de pessoas?
A decisão é um marco, sobretudo, por consolidar na nossa história constitucional o direito fundamental à proteção de dados pessoais. Nesse sentido, o julgado é comparável em significado ao julgamento da Corte Constitucional alemã de 1983, que cunhou de forma pioneira o conceito de autodeterminação informativa.
O reconhecimento desse direito autônomo no Brasil traz um duplo efeito para os poderes do Estado: por um lado, proíbe atos normativos que se constituam em grande intervenção ao direito à proteção de dados (dever negativo); e, por outro, impõe a adoção de medidas para a garantia desse direito, como é o caso da criação de uma autoridade de proteção de dados (dever positivo).
O mundo mudou, e com ele também o conceito de privacidade. A Constituição de 1988 não pode se tornar obsoleta frente às possibilidades e desafios que a tecnologia nos apresenta. Em uma sociedade conectada, a proteção de dados não é mais um direito entre tantos, mas um pressuposto para a manutenção da confiança dos cidadãos nas estruturas de comunicação e informação, bem como para o necessário fluxo de dados e inovação.
A decisão do STF mantém viva a nossa Constituição e se apresenta como um passo rumo ao fortalecimento da proteção de dados no Brasil. Precisará, contudo, ser concretizada pela academia, sociedade civil, empresas e demais poderes do Estado.
Laura Schertel Mendes
Professora da Universidade de Brasília e do IDP (Instituto Brasiliense de Direito Público), é doutora pela Universidade Humboldt de Berlim
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