Foi-se o tempo das antigas listas telefônicas de papel. E com ele se foi também uma visão antiga do direito à privacidade, de que somente os dados mais íntimos e sensíveis mereceriam proteção constitucional.
Essa ideia, que se extrai do voto da ministra Cármen Lúcia, sintetiza a controvérsia que se instalou no Supremo Tribunal Federal (STF) nos dias 6 e 7 de maio. Seria o levantamento de nome, endereço, telefone fixo e celular de 140 milhões de brasileiros algo tão inofensivo que não mereceria qualquer proteção constitucional, bastando para a sua coleta uma vaga medida provisória sem garantias concretas de proteção? Ou poderia tal coleta e a formação de um banco de dados estruturado colocar em risco as liberdades dos cidadãos?
A resposta do STF foi contundente. Com a maioria de dez votos, o tribunal declarou a inconstitucionalidade da medida provisória 954. Demonstrou, assim, que está sensível aos novos desafios que as tecnologias de processamento de dados apresentam aos direitos fundamentais e à própria democracia.
O julgamento foi importante, em primeiro lugar, por reconhecer que não há dados neutros ou insignificantes no contexto atual de processamento de dados. Hoje, todos os passos do nosso cotidiano são acompanhados por um smartphone, notebook ou assistentes virtuais. Qualquer dado que leve à identificação de uma pessoa pode, assim, ser usado para a formação de perfis informacionais de grande valia para o mercado e para o Estado, como se lê no voto da ministra relatora Rosa Weber. O que se poderia dizer então do número de celular, que, nas palavras da Anatel, constitui verdadeira chave de acesso a milhões de pessoas?
A decisão é um marco, sobretudo, por consolidar na nossa história constitucional o direito fundamental à proteção de dados pessoais. Nesse sentido, o julgado é comparável em significado ao julgamento da Corte Constitucional alemã de 1983, que cunhou de forma pioneira o conceito de autodeterminação informativa.
O reconhecimento desse direito autônomo no Brasil traz um duplo efeito para os poderes do Estado: por um lado, proíbe atos normativos que se constituam em grande intervenção ao direito à proteção de dados (dever negativo); e, por outro, impõe a adoção de medidas para a garantia desse direito, como é o caso da criação de uma autoridade de proteção de dados (dever positivo).
O mundo mudou, e com ele também o conceito de privacidade. A Constituição de 1988 não pode se tornar obsoleta frente às possibilidades e desafios que a tecnologia nos apresenta. Em uma sociedade conectada, a proteção de dados não é mais um direito entre tantos, mas um pressuposto para a manutenção da confiança dos cidadãos nas estruturas de comunicação e informação, bem como para o necessário fluxo de dados e inovação.
A decisão do STF mantém viva a nossa Constituição e se apresenta como um passo rumo ao fortalecimento da proteção de dados no Brasil. Precisará, contudo, ser concretizada pela academia, sociedade civil, empresas e demais poderes do Estado.
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