sábado, 9 de maio de 2020

Atila Iamarino Os céticos da Covid-19, FSP

Dos males do cigarro à inflamação da garganta, ciência já foi questionada antes

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A pandemia é difícil de engolir. Para alguns, o isolamento social é mais intragável. É difícil convencer alguém de algo quando seu salário depende de não entender aquilo, já dizia Upton Sinclair. Imagine então quando a saúde é colocada à frente da economia.
A Covid-19 chegou de supetão, mas com a quarentena reduzindo o avanço da pandemia, negadores da realidade ganharam tempo de se organizar. Surgem os primeiros céticos da Covid-19, da quarentena, do lockdown ou mesmo das mortes.
Poucos questionariam usar o antibiótico azitromicina para faringite. Já para o tratamento da Covid, não faltam opiniões, principalmente entre os que apresentam tratamentos não como um objetivo que é procurado, mas como uma alternativa certa à necessidade de quarentena. Onde a ciência ainda não é certa ou é certa mas contrária, substituem-na por opiniões que transformam fatos em pontos de vista abertos à debate. Consensos viram ideias identitárias.
Países de todo espectro político adotaram isolamento sério, da direita israelense ao partido comunista vietnamita. Mas nada disso importa para quem precisa invalidar essas medidas e mandar as pessoas para rua e pinta o isolamento da cor política que mais desagradar a audiência.
Dizem que um sapo na água esquentando devagar não percebe quando ela ferve e acaba cozido. A fábula corporativa sobre mudança gradual ignora o fato de que sapos registram bem a temperatura ambiente e vão tentar pular da panela quando ela ultrapassa o que toleram. Já humanos têm um órgão especializado em criar justificativas racionais para decisões emocionais e vão fazer o possível para convencer o próximo —e, se bobear, até o sapo— de que o planeta, digo, a panela não está aquecendo.
Quando a ciência propôs que garganta inflamada seria causada por bactérias, houve quem questionasse. E não foram cientistas, mas, sim, comerciantes e industriais que usavam políticos e imprensa para negar que as quarentenas que os davam tanto prejuízo nos protegeriam de doenças como a febre amarela.
No fim do mesmo século, Thomas Edison foi mais discreto para desacreditar a ciência desfavorável à corrente elétrica contínua de sua empresa. Contratou o engenheiro elétrico Harold Brown para se passar por um especialista interessado no bem-estar das pessoas que escrevia para jornais condenando a corrente alternada dos concorrentes.
Métodos parecidos viraram modelo de negócios no questionamento da relação entre cigarro e câncer por médicos e especialistas contratados pela publicidade de empresas de tabaco. Os mesmos especialistas contratados questionavam a relação entre poluição e chuva ácida ou entre o uso de combustíveis fósseis e o aquecimento global, como o livro “Merchants of Doubt” conta.
Recentemente, essa técnica foi transposta para a internet e deu origem aos 4 D’s da propaganda feita para soterrar a verdade onde a censura não é possível: Desqualificar os críticos, como este biólogo aqui, atacado por apresentar a realidade; Distorcer os fatos, como a efetividade óbvia da quarentena na Europa; Distrair do problema, com tratamentos que não funcionam ou isolamento vertical —tão efetivo quanto escolher um canto da piscina para fazer xixi, como bem disseram no Twitter; e Desanimar a audiência com a insistência em cada ponto desse usando “especialistas”, médicos ou influenciadores do ódio que aceitam milhares de mortes (dos outros) como necessárias.
É o tradicional negacionismo da ciência, desta vez feito com as mãos sujas de sangue.
Atila Iamarino

sexta-feira, 8 de maio de 2020

África e a covid-19, um mistério, Gilles Lapouge, OESP

Esperava-se que nas capitais e nas grandes cidades africanas ocorressem explosões da doença, guerras e mortes nas vastas planícies, mas não

Gilles Lapouge, O Estado de S.Paulo

08 de maio de 2020 | 03h00

E o que dizer da África? A das areias e das grandes florestas tropicais, dos lagos, a África das enormes aglomerações e isolamentos? No caso da covid-19, calamidades eram anunciadas. O vírus, quando chegasse a esse continente pobre, sem assistência médica e já fragilizado por outras epidemias, pela tuberculose, paludismo ou, mais recentemente, o terrível Ebola, que ainda não está fora de combate na maior parte do Congo, como se comportaria?

Esperava-se que nas capitais e nas grandes cidades africanas ocorressem explosões da doença, guerras e mortes nas vastas planícies, mortes silenciosas. Mas não.

Varal
Máscaras penduradas ao sol na Cidade do Cabo, na África do Sul. Foto:Nic Bothma/EFE  

A covid-19 está presente ali, mas nada comparável às imagens apocalípticas previstas. Em 18 de março a Organização Mundial da Saúde (OMS) prognosticou “um verdadeiro cataclisma”. Que não se verificou. Claro que o vírus chegou ao continente, mas sua periculosidade não se compara à que se observou na China ou na Europa. Os dados confirmam. A África representa 17% da população mundial e registrou menos de 1% de mortes por esse vírus.

Proliferam as pesquisas e explicações. Fala-se da pouca idade das populações: 60% dos africanos têm menos de 25 anos. A Itália, o país europeu mais atingido pelo vírus, tem uma população muito idosa. Mas o contra-argumento é de que o Japão está repleto de idosos e não sofreu uma hecatombe, longe disto. Mas se as notícias do Brasil não me confundem, a região mais atingida seria o Nordeste. E o Nordeste não tem um clima temperado.

Há uma outra tese, paradoxal, quando sabemos que a África carece de médicos, equipamentos hospitalares, em resumo, de todas as proteções que os europeus implementaram contra o vírus. E então surgiu a resposta, uma nova teoria: a África já tem uma experiência rica em matéria de doenças e epidemias, o que protegeria o continente de duas maneiras: aqueles outros flagelos injetaram nos africanos anticorpos que fariam frente ao novo invasor. 

Além disto, as populações, mesmo as distantes das grandes cidades, foram tão afetadas por outras doenças e epidemias que se habituaram, quase naturalmente, aos gestos e precauções, como distanciamento social, hábitos de higiene, máscaras, que os europeus têm dificuldade para respeitar.

Alguns também citam experiências singulares. No Senegal, tem sido utilizado o medicamento proposto pelo microbiologista Didier Raoult, que não é recomendado na França porque ainda não foi concluída a bateria de testes recomendados. Além da burocracia, o Senegal ignorou o fato (como outros países da África, Camarões, Costa do Marfim, África do Sul). 

O diretor do hospital Fann, de Dacar, resumiu desta maneira a utilização do remédio: “Em todos os pacientes que se beneficiaram do tratamento de Raoult, à base de hidroxicloroquina, não observamos nenhuma complicação, muito menos mortes”. Não conheço outros dados, em todo o caso, em Dacar, as pessoas estão convencidas que o protocolo teve bons resultados.

O jornal Libération fez uma pesquisa na ilha de Madagascar. Lá é distribuído um chá batizado CVO que seria eficaz, curando o paciente em sete dias. Não sabemos nada sobre esse CVO. É fabricado a partir de uma mistura vegetal, que inclui a Artemísia (chamada também de erva de São João) e outras plantas nativas da grande ilha. Neste caso, também não houve testes clínicos, mas há um grande entusiasmo por esse chá misturado com outras plantas usadas contra o paludismo. Nenhuma prova. Nos Camarões, o arcebispo de Douala disse que foi curado com uma combinação de Artemísia e outras plantas. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Momentos pós-Covid-19, FSP

Houve um momento em que tive a sensação de que poderia não sobreviver. Não sei identificar o exato momento quando tive a nítida sensação de que estava sendo sugado para o fundo de um furacão escuro. Nessa hora entendi que tinha que queria, e muito, continuar vivo!
Em segundos (imagino), passou pela minha cabeça que tinha minha família para seguir amando e dela cuidar, assim como a percepção de que ainda queria sentir prazeres da vida, como o convívio com os amigos, o vinho que não tomei, as músicas que não ouvi.
O médico Raul Cutait, que se recuperou de Covid-19; na foto ele, que é um home calvo e de bigode, está de terno, com um meio sorriso sério; o fundo é escuro, salvo por uma iluminação indireta, amarelada, no teto
O médico Raul Cutait, que se recuperou de Covid-19 - Zanone Fraissat 4.dez.19/Folhapress
Além disso, tenho projetos para minha vida que requerem mais alguns anos por aqui. Fora isso, a percepção de que morrer por infecção não tinha glamour nenhum! Dentro de mim, enchi-me de determinação para sair vivo. E saí.
Essa determinação interior pode ter ajudado, nunca saberei ao certo. Mas, sem dúvida, foi fundamental a qualidade do atendimento que recebi, não apenas da equipe médica que me assistia, mas dos demais profissionais de saúde que compunham a equipe multidisciplinar de apoio, o time dos anjos invisíveis.
Em vários momentos, recebi apoio e carinho desses anjos, sem mesmo ver seus rostos, uma vez que todos sempre usavam máscaras. Quando retomei minha plena consciência, pensava: como poderia agradecer pessoalmente a cada um deles?
Um fato emocionante: cada paciente que tinha alta da UTI ou do hospital era saudado na sua saída pelo time que dele cuidava com palmas, num gesto de alegria e satisfação interior de missão cumprida. Comigo não foi diferente e, confesso, as lágrimas rolaram.
As perguntas clássicas logo se acumularam. A primeira delas: você sofreu muito?
Acho que quem sofreu mais foi quem estava torcendo por mim, em especial minha família. Seguramente, tive momentos muito difíceis e angustiantes, mas, logo que saí do hospital, os sofrimentos se dissiparam como nuvens em dia de ventania, sem deixar marcas.
A segunda: você vai repensar sua vida, não vai?
Obviamente, a gente repensa tudo, mas percebi que estou contente com o que faço e pretendo fazer, faltando-me na verdade um pouco mais de disciplina para não desperdiçar um precioso elemento da vida, que é o tempo.
Como alguém que se preocupa com a causa da saúde, logo percebi que fui privilegiado por ser tratado num hospital de ponta, para o qual dediquei muitos anos de minha vida como cirurgião e dirigente, e logo veio a comparação com o atendimento que o setor público pode fornecer.
Apesar das dificuldades e limitações, está ocorrendo um tremendo engajamento dos setores público, filantrópico e privado lucrativo na luta contra o maligno coronavírus, com fornecimento de leitos, equipamentos e recursos financeiros.
Hoje, mais do que nunca, a palavra de ordem é solidariedade. Somos todos responsáveis por todos, como eram os mosqueteiros de Dumas: um por todos e todos por um! Sem fronteiras geográficas ou socioeconômicas.
O isolamento é muito importante para o controle da pandemia, mas causa estragos incomensuráveis na economia nacional, nas condições financeiras de milhões de pessoas, embora como benefício colateral tenha proporcionado uma maior aproximação entre pessoas que vivem sob um mesmo teto.
Numa situação como a que vivemos, aumenta a indignação com as desigualdades sociais. Assim, como pedir isolamento para uma família onde vivem seis pessoas em um só cômodo? Como exigir isolamento para cerca de 40% da população ativa que vive na informalidade ou desempregada? Para aqueles que vendem balinhas de dia para à noite ter feijão no prato?
Num mundo onde mais de 1 bilhão de pessoas vivem em condições miseráveis, devemos aproveitar essa terrível experiência para repensar globalmente como nossas sociedades devem se reposicionar para diminuir a tremenda iniquidade que grassa pelo mundo afora.

Raul Cutait
Professor do departamento de cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina, é cirurgião do Hospital Sírio Libanês