Dos males do cigarro à inflamação da garganta, ciência já foi questionada antes
A pandemia é difícil de engolir. Para alguns, o isolamento social é mais intragável. É difícil convencer alguém de algo quando seu salário depende de não entender aquilo, já dizia Upton Sinclair. Imagine então quando a saúde é colocada à frente da economia.
A Covid-19 chegou de supetão, mas com a quarentena reduzindo o avanço da pandemia, negadores da realidade ganharam tempo de se organizar. Surgem os primeiros céticos da Covid-19, da quarentena, do lockdown ou mesmo das mortes.
Poucos questionariam usar o antibiótico azitromicina para faringite. Já para o tratamento da Covid, não faltam opiniões, principalmente entre os que apresentam tratamentos não como um objetivo que é procurado, mas como uma alternativa certa à necessidade de quarentena. Onde a ciência ainda não é certa ou é certa mas contrária, substituem-na por opiniões que transformam fatos em pontos de vista abertos à debate. Consensos viram ideias identitárias.
Países de todo espectro político adotaram isolamento sério, da direita israelense ao partido comunista vietnamita. Mas nada disso importa para quem precisa invalidar essas medidas e mandar as pessoas para rua e pinta o isolamento da cor política que mais desagradar a audiência.
Dizem que um sapo na água esquentando devagar não percebe quando ela ferve e acaba cozido. A fábula corporativa sobre mudança gradual ignora o fato de que sapos registram bem a temperatura ambiente e vão tentar pular da panela quando ela ultrapassa o que toleram. Já humanos têm um órgão especializado em criar justificativas racionais para decisões emocionais e vão fazer o possível para convencer o próximo —e, se bobear, até o sapo— de que o planeta, digo, a panela não está aquecendo.
Quando a ciência propôs que garganta inflamada seria causada por bactérias, houve quem questionasse. E não foram cientistas, mas, sim, comerciantes e industriais que usavam políticos e imprensa para negar que as quarentenas que os davam tanto prejuízo nos protegeriam de doenças como a febre amarela.
No fim do mesmo século, Thomas Edison foi mais discreto para desacreditar a ciência desfavorável à corrente elétrica contínua de sua empresa. Contratou o engenheiro elétrico Harold Brown para se passar por um especialista interessado no bem-estar das pessoas que escrevia para jornais condenando a corrente alternada dos concorrentes.
Métodos parecidos viraram modelo de negócios no questionamento da relação entre cigarro e câncer por médicos e especialistas contratados pela publicidade de empresas de tabaco. Os mesmos especialistas contratados questionavam a relação entre poluição e chuva ácida ou entre o uso de combustíveis fósseis e o aquecimento global, como o livro “Merchants of Doubt” conta.
Recentemente, essa técnica foi transposta para a internet e deu origem aos 4 D’s da propaganda feita para soterrar a verdade onde a censura não é possível: Desqualificar os críticos, como este biólogo aqui, atacado por apresentar a realidade; Distorcer os fatos, como a efetividade óbvia da quarentena na Europa; Distrair do problema, com tratamentos que não funcionam ou isolamento vertical —tão efetivo quanto escolher um canto da piscina para fazer xixi, como bem disseram no Twitter; e Desanimar a audiência com a insistência em cada ponto desse usando “especialistas”, médicos ou influenciadores do ódio que aceitam milhares de mortes (dos outros) como necessárias.
É o tradicional negacionismo da ciência, desta vez feito com as mãos sujas de sangue.
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