Houve um momento em que tive a sensação de que poderia não sobreviver. Não sei identificar o exato momento quando tive a nítida sensação de que estava sendo sugado para o fundo de um furacão escuro. Nessa hora entendi que tinha que queria, e muito, continuar vivo!
Em segundos (imagino), passou pela minha cabeça que tinha minha família para seguir amando e dela cuidar, assim como a percepção de que ainda queria sentir prazeres da vida, como o convívio com os amigos, o vinho que não tomei, as músicas que não ouvi.
Além disso, tenho projetos para minha vida que requerem mais alguns anos por aqui. Fora isso, a percepção de que morrer por infecção não tinha glamour nenhum! Dentro de mim, enchi-me de determinação para sair vivo. E saí.
Essa determinação interior pode ter ajudado, nunca saberei ao certo. Mas, sem dúvida, foi fundamental a qualidade do atendimento que recebi, não apenas da equipe médica que me assistia, mas dos demais profissionais de saúde que compunham a equipe multidisciplinar de apoio, o time dos anjos invisíveis.
Em vários momentos, recebi apoio e carinho desses anjos, sem mesmo ver seus rostos, uma vez que todos sempre usavam máscaras. Quando retomei minha plena consciência, pensava: como poderia agradecer pessoalmente a cada um deles?
Um fato emocionante: cada paciente que tinha alta da UTI ou do hospital era saudado na sua saída pelo time que dele cuidava com palmas, num gesto de alegria e satisfação interior de missão cumprida. Comigo não foi diferente e, confesso, as lágrimas rolaram.
As perguntas clássicas logo se acumularam. A primeira delas: você sofreu muito?
Acho que quem sofreu mais foi quem estava torcendo por mim, em especial minha família. Seguramente, tive momentos muito difíceis e angustiantes, mas, logo que saí do hospital, os sofrimentos se dissiparam como nuvens em dia de ventania, sem deixar marcas.
A segunda: você vai repensar sua vida, não vai?
Obviamente, a gente repensa tudo, mas percebi que estou contente com o que faço e pretendo fazer, faltando-me na verdade um pouco mais de disciplina para não desperdiçar um precioso elemento da vida, que é o tempo.
Como alguém que se preocupa com a causa da saúde, logo percebi que fui privilegiado por ser tratado num hospital de ponta, para o qual dediquei muitos anos de minha vida como cirurgião e dirigente, e logo veio a comparação com o atendimento que o setor público pode fornecer.
Apesar das dificuldades e limitações, está ocorrendo um tremendo engajamento dos setores público, filantrópico e privado lucrativo na luta contra o maligno coronavírus, com fornecimento de leitos, equipamentos e recursos financeiros.
Hoje, mais do que nunca, a palavra de ordem é solidariedade. Somos todos responsáveis por todos, como eram os mosqueteiros de Dumas: um por todos e todos por um! Sem fronteiras geográficas ou socioeconômicas.
O isolamento é muito importante para o controle da pandemia, mas causa estragos incomensuráveis na economia nacional, nas condições financeiras de milhões de pessoas, embora como benefício colateral tenha proporcionado uma maior aproximação entre pessoas que vivem sob um mesmo teto.
Numa situação como a que vivemos, aumenta a indignação com as desigualdades sociais. Assim, como pedir isolamento para uma família onde vivem seis pessoas em um só cômodo? Como exigir isolamento para cerca de 40% da população ativa que vive na informalidade ou desempregada? Para aqueles que vendem balinhas de dia para à noite ter feijão no prato?
Num mundo onde mais de 1 bilhão de pessoas vivem em condições miseráveis, devemos aproveitar essa terrível experiência para repensar globalmente como nossas sociedades devem se reposicionar para diminuir a tremenda iniquidade que grassa pelo mundo afora.
Raul Cutait
Professor do departamento de cirurgia da Faculdade de Medicina da USP e membro da Academia Nacional de Medicina, é cirurgião do Hospital Sírio Libanês
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