sexta-feira, 8 de maio de 2020

Hélio Schwartsman Rodízio doidivanas, FSP

Medidas precisam diminuir a circulação de pessoas, não a de veículos

  • 8
Por mais que tente, não consigo ver consistência na ideia do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, de instituir um megarrodízio de veículos no município, com o objetivo de restringir a circulação de pessoas. A partir da próxima segunda-feira, as regras do rodízio mudarão para tirar das ruas metade da frota a cada dia, incluindo sábados, domingos e feriados, e a interdição valerá na cidade inteira (era só no centro expandido), durante todo o dia (era só nos horários de pico).
A preocupação do alcaide é correta. A adesão dos paulistanos ao distanciamento social vem caindo, ao mesmo tempo em que a ocupação das UTIs está aumentando. E essa é uma combinação explosiva. A persistir a tendência, teremos cada vez mais infectados e menos condições de cuidar dos doentes.
Só que a resposta para esse problema são medidas que diminuam a circulação de pessoas, não a de veículos. Em termos sanitários, é muito melhor que os indivíduos que estão autorizados a continuar trabalhando se locomovam em carros particulares do que se utilizem do transporte coletivo, no qual ocorrem muito mais oportunidades de transmissão do vírus e onde diferentes clusters populacionais entram em contato.
Isso para não mencionar o caso daqueles que, mesmo sem integrar o grupo dos que atuam em serviços essenciais, precisam deslocar-se emergencialmente para um hospital, uma consulta médica, ou para comprar um remédio. Muitas vezes, são pessoas do grupo de risco as que não podem adiar tratamentos.
Minha impressão é que Covas optou por esse rodízio meio maluco porque não teve coragem de instituir o “lockdown”, no qual o controle se daria, como faz muito mais sentido, sobre o objetivo da saída e não sobre o meio de transporte utilizado. Só posso especular sobre as razões que levaram o prefeito a preferir esse arremedo de solução, que poderá até agravar o contágio, ao “lockdown”, que, infelizmente, parece cada dia mais inevitável.
Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".

quinta-feira, 7 de maio de 2020

O coronavírus e a teoria da evolução estapafúrdia de Winston Ling, FSP

Reinaldo José Lopes
É absolutamente vergonhoso e temerário que um empresário bem-sucedido e influente como o sinobrasileiro Winston Ling espalhe desinformação sobre o coronavírus com base num arremedo de raciocínio darwinista. A teoria da evolução tem uma lógica clara, mas é preciso entendê-la direito.
Em sua conta no Twitter, Ling afirmou recentemente que já existiriam o “corona bom” e o “corona mau”. Vírus “inteligentes”, segundo ele, são os que se espalham o máximo possível causando o menor dano possível no hospedeiro. Ao ficar em casa, estaríamos favorecendo evolutivamente o “corona mau”.
Existem mais buracos nesse raciocínio simplista do que numa peneira de cruzeta, lamento informar. Pra começo de conversa, o empresário se esquece de que os sintomas — espirro, tosse etc. — são PARTE FUNDAMENTAL da estratégia de espalhamento de um vírus respiratório. Além disso, justamente por ser vírus respiratório, que por definição se espalha fácil, o incentivo evolutivo para “ficar na moita” é muito menor porque não há problema em causar sintomas severos desde que o vírus consiga pular fácil pra outros indivíduos suscetíveis. Não adianta tentar raciocinar sobre dinâmica evolutiva sem levar em conta os parâmetros ecológicos e a relação de custo-benefício envolvida num sistema. (A gente imaginaria que empresários, pelo menos, conseguiriam pensar em termos de custo-benefício, mas não parece ser o caso aqui…)
Outra questão que Ling deveria ter considerado, se queria brincar de análise de custo-benefício darwinista, é o fato de o vírus ter acabado de saltar de um hospedeiro animal para seres humanos. Isso significa que o ajuste fino que ele espera do vírus AINDA NÃO OCORREU. É justamente o fato de termos uma história tão curta de convivência entre hospedeiro e parasita que temos tanta gente vulnerável — o mundo inteiro, na verdade — e sintomas tão variados e estranhos sendo causados. Esse vírus ainda “não sabe direito o que fazer” num corpo humano.
Também não parece ter passado pela cabeça do nosso temerário amigo Ling que esse ajuste NÃO DEPENDE SÓ DO VÍRUS. Depende tb, e muito, da BIOLOGIA DOS HOSPEDEIROS (que varia de pessoa pra pessoa em nível genético, por exemplo) e de fatores como alimentação e estresse. Olhar as coisas desse modo unidimensional, em biologia, é receita para o fracasso.
Finalmente, até agora não há informação NENHUMA sobre níveis diferentes de agressividade das linhagens de Sars-CoV-2. ZERO. Sem essa informação, e sem as bases que citei, Ling está construindo castelos de cartas no ar, na melhor das hipóteses (misturei as metáforas, desculpem). Empresários sabem ganhar dinheiro, parabéns pra eles. Mas sujeitos influentes como Ling deveriam ficar no cantinho deles quando sentirem a tentação de travestir seus vieses e interesses em informação “científica” pra dezenas de milhares de pessoas. Não estamos em condições de correr mais esse risco.

Presidente da Fiocruz fala do combate ao coronavírus: 'Essa epidemia é o grande marco do século 21', OESP

Entrevista com
Nísia Trindade, presidente da Fiocruz
Roberta Jansen, O Estado de S.Paulo
07 de maio de 2020 | 16h17
RIO - Primeira mulher a assumir a presidência da Fiocruz em 120 anos da existência da instituição, a socióloga Nísia Trindade faz um balanço do trabalho da fundação no combate à epidemia de covid-19: “Não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz”. Se dizendo realista, ela estima um prazo maior que o desejável, de 18 a 24 meses, para o surgimento de uma vacina contra o novo coronavírus.
Nesta entrevista exclusiva ao Estado, ela explica por que recomendou ao governo do Estado do Rio o lockdown e diz que a epidemia vai trazer mudanças sociais profundas para toda a sociedade. Citando o historiador Eric Hobsbawm, Nísia diz que a pandemia é o evento histórico que inaugura o século 21. “Não tenho dúvida de que essa epidemia é o grande marco do século 21, que inaugura o século 21. E ela nos mostra a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, da globalização sem cuidado às populações, do turismo intenso. Mas ainda não é possível pensar, como seria desejável, que teremos um mundo mais solidário.”
Nísia Trindade, presidente da Fiocruz
Nísia Trindade, presidente da Fiocruz Foto: Peter Ilicciev / Fiocruz

O relatório que vocês encaminharam ontem para o Ministério Público recomenda o lockdown para o Rio. Essa é a única forma de impedir o colapso total do sistema de saúde?

Elaboramos um relatório a pedido MP-RJ porque entendemos que é necessário salvar vidas e preparar o sistema de saúde frente a uma escalada de casos. Temos algumas ferramentas de monitoramento e estudos em curso e todos indicam o crescimento acelerado dos casos e o afrouxamento do isolamento da população no Rio de Janeiro, assim como em outros Estados. Além disso, os dados revelam que a covid-19 está se irradiando das metrópoles para cidades menores, que têm ainda menos condições de lidar com esta crise, e onde o sistema de saúde está muito próximo de seu limite. O isolamento é a melhor medida que temos disponível para frear a disseminação da doença e esse isolamento mais rigoroso é o que pode evitar um longo período de falta de leitos, médicos e equipamentos. Como sabemos, os efeitos das atitudes que tomamos hoje serão sentidos em uma ou duas semanas, que é o tempo entre o contágio e a evolução do quadro da doença. Então, é muito importante agirmos agora. Outro aspecto fundamental que gostaria de ressaltar, como colocamos no documento, é que as medidas restritivas devem vir acompanhadas de apoio às populações vulneráveis para que possam cumprir o isolamento, particularmente aqueles que dependem de trabalho informal ou precário, bem como suporte a pequenas empresas que geram empregos e podem sofrer grande impacto da pandemia.

Como podemos comparar a Fiocruz de hoje, que está completando 120 anos em meio ao combate da covid-19, com a Fiocruz em seus primórdios, das grandes lutas sanitárias do passado?

A Fiocruz surge no inicio do século 20, quando a questão das epidemias preocupava autoridades no Rio, que era a capital, e em São Paulo, sobretudo nas cidades portuárias. Isso estava ligado à visão de uma economia exportadora, que recebia muita imigração. Esses grandes desafios sanitários estiveram na origem da criação do Instituto Oswaldo Cruz. Comparações históricas são sempre arriscadas, mas guardamos esse trabalho que integra ciência de alta qualidade, tecnologia e inovação. Porque, no passado, já tínhamos produção de vacina e formávamos pesquisadores. Em comum, temos uma ciência capaz de responder a grandes desafios sanitários, o que aumenta o nosso valor social, o nosso reconhecimento pela sociedade ao longo do século e, de maneira marcante, no enfrentamento a essa epidemia.

A Fiocruz foi denominada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) o laboratório de referência para covid-19 na América Latina. É um reconhecimento importante desse papel histórico?

Sim, é um importante reconhecimento, sobretudo para o nosso laboratório de vírus respiratórios e sarampo, que se ergueu no final dos anos 70, durante a epidemia de meningite. Significa o reconhecimento ao nosso trabalho de formação de pesquisadores, treinamento para diagnóstico e identificação do vírus SARS-Cov-2 e o papel central nas pesquisas sobre a mutação do vírus em território brasileiros e latino-americano, que é importante para o desenvolvimento de vacinas além de orientar protocolos e padrões de trabalho para os laboratórios de toda a região. A Fiocruz também é responsável pela criação de um pensamento integrado na pandemia, de juntar todas as peças de todos os trabalhos. Isso não é um esforço de guerra, é um grande esforço de paz.

Ao mesmo tempo, muitos pesquisadores estão sendo duramente atacados, sobretudo aqueles que trabalham com os estudos que visam a atestar a eficácia da cloroquina no tratamento da covid-19...

O trabalho da ciência voltado para a saúde sempre gera conflitos. Há muitas incompreensões, muitos interesses envolvidos. Mas toda a nossa argumentação está baseada em dois pilares, excelência da pesquisa e ética. Para a ciência ser exercida com liberdade, é fundamental que seja acompanhada por comitês independentes. Os dois pilares têm de estar presentes. A pandemia está demonstrando cada vez mais a importância da ciência para as políticas públicas adequadas.

A senhora tem comparado o momento atual ao da gripe espanhola de 1918. A situação só é comparável à dessa outra epidemia, de um século atrás?

É mais um paralelo que uma comparação; são mundos muito diferentes, a atividade científica é diferente. Mas fiz o paralelo pensando no impacto social, econômico e na vida das pessoas de uma pandemia de grande letalidade. Há vários estudos mostrando que, na gripe espanhola, houve medidas de isolamento, fechamento de atividades de serviço, e também muita controvérsia. A gripe espanhola é uma grande referência para os virologistas, ela matou mais do que a guerra, e tem uma importância crucial para os grandes movimentos da sociedade e possíveis mudanças. Como a gripe espanhola, a covid-19 é uma doença nova, que se dissemina em alta velocidade e para qual não temos vacina nem medicamentos – mesmo com todo o desenvolvimento da ciência. Mas temos hoje algo importante que não tínhamos no passado: um sistema universal de saúde e instituições mais robustas, como a Fiocruz, institutos de pesquisa, universidades.

Os especialistas concordam que a testagem em massa é a melhor estratégia para combater a epidemia. No entanto, no mundo todo, há uma carência de testes e insumos. Estamos conseguindo superar esse obstáculo?

Desenvolvemos um teste diagnóstico, fruto de um trabalho nosso de décadas que nos permitiu dar essa resposta rapidamente, ainda que não no volume que se queria. Mas agora estamos entregando dois milhões de testes mensais. Serão 11 milhões até setembro de testes moleculares, daqueles que têm mais precisão. O objetivo é justamente identificar as pessoas contaminadas e seus contatos. Estamos produzindo também os testes sorológicos, que apontam a presença de anticorpos. Além disso, temos um painel para avaliar a sensibilidade dos testes rápidos que estão chegando ao Brasil autorizados pela Anvisa.
Hospital de campanha está em instalação junto à Fiocruz, no Rio
Hospital de campanha está em instalação junto à Fiocruz, no Rio Foto: Wilton Junior/Estadão

Qual a perspectiva para o fim da epidemia?

Enquanto não tivermos uma vacina ou um percentual alto de imunidade da população – lembrando que ter anticorpos não implica necessariamente imunidade --, e com o comportamento que vem sendo observado na nossa população, tudo aponta para um problema de saúde pública de longa duração. Nossos principais virologistas e epidemiologistas concordam que isso vai demandar uma vigilância forte e permanente. Algumas atividades poderão ser liberadas no momento adequado, mas sob controle, sob vigilância estreita. O Brasil terá de reforçar seu sistema de vigilância, integrá-lo de forma ainda mais eficiente ao Sistema Único de Saúde (SUS), da atenção básica, e olhar especialmente para os grupos mais vulneráveis, que mais facilmente adoecerão.

Quanto tempo a senhora estima para termos uma vacina, uma vez que a própria Fiocruz participa dos esforços mundiais pelo desenvolvimento de um imunizante?

De 18 a 24 meses. Mas a vacina precisará ser acessível a todos, ou não resolverá o problema. Não adianta termos uma vacina caríssima. Temos de pensar numa política integrada, que envolva a sociedade como um todo. Esta é uma crise sanitária e humanitária.

A Fiocruz tem projetos próprios de vacina?

Temos dois grupos de pesquisa dedicados ao desenvolvimento de vacinas e também podemos contribuir para a produção em colaboração com laboratórios nacionais e internacionais. Mas, como disse, isso precisa vir com uma política de acesso.

Os esforços da Fiocruz integram o estudo mundial Solidariedade, coordenado pela OMS. Já temos algum resultado dos estudos coordenados pela Fiocruz sobre os medicamentos que poderiam ser eficientes contra a covid-19, como a cloroquina?

Não temos resultados ainda. Estamos trabalhando com uma ampla rede de hospitais, em 12 Estados, e teremos resultados em breve. É difícil estabelecer prazos, mas estamos trabalhando intensamente. Já temos dois mil pacientes incluídos, o que, do ponto de vista de um país, é a maior amostra do estudo já realizada. Esse estudo está sendo feito nos mais diversos países, como Espanha, Noruega, França, Irã, Filipinas, Indonésia, Líbano.

O hospital para atender casos graves de covid-19 no Instituto Nacional de Infectologia já está recebendo pacientes?

O hospital vai começar a receber pacientes na próxima semana, a partir do dia 15. As instalações físicas estão em finalização, mas é uma operação complexa, estamos finalizando o recebimento de respiradores. Será diferente dos hospitais de campanha que estão sendo montados, é um centro de UTI, para pacientes graves.

O vírus Sars-Cov19 já sofreu mutações no Brasil? Quais as implicações dessas mudanças?

Nossos estudos já apontam mutações – que é uma característica dos vírus. Mas ainda estamos estabelecendo correlações entre essas mutações e o tipo de manifestação clínica relacionada. Isso é matéria de novos estudos. Ainda há muita pergunta sem resposta, muita pesquisa a ser feita. Não quero causar pânico, mas esse vírus ainda é um grande desconhecido, um estrangeiro.

A senhora mencionou que as pandemias, historicamente, têm um papel fundamental nas mudanças sociais. Qual seria o dessa pandemia?

São muitos processos em curso, sobretudo ligados à quarta revolução industrial, à questão das mídias sociais, da tecnologia da informação, do trabalho a distância. (O historiador Eric) Hobsbawm falava que os grandes marcos dos séculos não seriam os marcos de cronologia imediata, mas os grandes eventos que marcam esses séculos. Não tenho dúvida que essa epidemia é o grande marco do século 21, que inaugura o século 21. E ela nos mostra a vulnerabilidade do nosso modelo de desenvolvimento, da globalização sem cuidado às populações, do turismo intenso. Mas ainda não é possível pensar, como seria desejável, que teremos um mundo mais solidário. Nos deparamos com a fragilidade da nossa civilização, mesmo no caso das nações mais ricas e sobretudo no caso de um país tão desigual como o nosso. Nosso desejo é que dessa epidemia venha o aumento da consciência da nossa interdependência, da importância da ciência para orientar políticas públicas, da defesa do direito do cidadão, da maior igualdade. Devemos perseguir esses objetivos, mas eles não estão dados. Porque, para isso, entra a Política, com P maiúsculo.