quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Por memória de JK, família faz de casa em Goiás museu por conta própria, FSP

LUZIÂNIA (GO)
"Dia 21 de novembro de 1971. Fiz Royal de Copas. Jogaram: Odete, Sarah, Paulo Nonato e Chalaça." 
A mensagem, escrita a caneta com letras tortas no tampo de uma caixa de jogos, parece comum a um jogador afortunado em uma rodada de pôquer.
Não fosse a assinatura logo abaixo: JK, iniciais que entregam que o vencedor daquela partida foi Juscelino Kubitschek.
As memórias do presidente que governou o país de 1956 a 1961 estão por todos os lados de uma fazenda localizada em Luziânia (GO), cidade a 60 km de Brasília, capital planejada e inaugurada por ele.
Última residência do médico e político mineiro, a chamada Fazendinha JK fica hoje aos cuidados de um casal que luta por conta própria pela preservação do local —a ponto de usar apenas 30% do espaço que pertence a eles mesmos.
Sentar no sofá? Nem pensar. Usar a mesa de vidro de JK? Só uma vez ao ano, no Natal, e apenas após tirar de lá as cadeiras onde ex-presidente e amigos costumavam sentar.
"Na prática, acabamos ficando mais do lado de fora do que dentro da casa", relata Antônio Servo, que cuida de toda a área com a mulher, Rosana.
A rotina também é imposta aos filhos e à mãe, de 85 anos –a única com algumas exceções.
Não faltam motivos para tamanho cuidado.
Comprada por Juscelino em 1972, a área, inicialmente com 310 alqueires, era parte do sonho do ex-presidente de ser fazendeiro em Goiás.
"Ele queria mostrar que plantar no cerrado era viável", conta Rosana. Também queria ter um lugar que o deixasse próximo de Brasília, mas o lembrasse de Minas Gerais.
As obras no espaço duraram dois anos. O jardim foi feito pelo paisagista Burle Marx. Já o projeto da casa, que remete às casas mineiras, é do arquiteto Oscar Niemeyer.
Dentro, há três salas. Uma delas é revestida em um papel de parede que imita palha e bambu e voltada a jogos. Em outra, fica a TV. Já a terceira abriga biblioteca e a mesa de jantar.

Sofás vermelhos em sala antiga, com quadros nas paredes, tapete, mesa e centro e vários objetos sobre elas
Quadros retratando cidades mineiras decoram a sala de estar da fazendinha - Pedro Ladeira/Folhapress
Também há quatro suítes e uma cozinha com fogão industrial, onde a família deixa expostas panelas que pertenciam aos Kubitscheks —para fazer o próprio almoço, usa outras mais simples, escondidas dos visitantes.
O piso é em ardósia e carpete verde. Os sofás são forrados em veludo laranja e em tecido com estampas de flores.
Salvo o reflexo do tempo, o que trouxe desgaste ao papel de parede e à pintura do teto, a maior parte do local aparenta estar do mesmo jeito que estaria no fim da década de 1970.
Há ainda na casa outros objetos que pertenceram a JK, como uma foto dele com Albert Sabin, que desenvolveu a vacina contra a pólio, uma jarra com as iniciais de Sarah Kubitschek, quadros que retratam a mãe de Juscelino, louças e copos.
"Deixamos tudo do mesmo jeito que dona Sarah deixou", afirma Rosana, que recebe turistas por lá.
Manter essa preservação não é fácil. Desde o início dos anos 2000, o casal, que herdou a casa do pai de Antônio, o ex-deputado estadual do Paraná Lázaro Servo, tem feito apelo a promotorias e governos para que o espaço seja tombado com patrimônio histórico e cultural. Sem sucesso.
Agora, a descoberta de vazamentos e a falta de recursos suficientes para manutenção lançaram novo temor de que a memória da última casa de JK seja engolida pelo tempo.
Com receio de quebrar as paredes para descobrir a origem do problema e prejudicar a estrutura, a família mantém fechados dois banheiros da casa há dois anos.
Enquanto isso, tenta apoio para restauro, estimado por arquitetos em cerca de R$ 5 milhões.
Questionado, o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) disse que recebeu o pedido de tombamento da Fazendinha em 2006, mas concluiu que a responsabilidade cabe à Secretaria de Cultura do Estado de Goiás. 
A secretaria foi procurada pela reportagem na sexta-feira (20), mas ainda não respondeu.
Enquanto não há solução, a família se vira como pode para preservar os objetos da casa, todos já catalogados.
Não são poucos. A biblioteca, por exemplo, é formada por uma estante com 1.800 livros. Alguns têm dedicatórias e anotações feitas pelo chamado "presidente da bossa nova".

Prateleira repleta de livros; sofás laranjas e florais compõem o ambiente
Biblioteca da casa tem cerca de 1.800 livros; sofás laranjas e florais também estão por lá - Pedro Ladeira/Folhapress
Um deles é o livro Invenção da Cidade, de Clemente Luz, com dedicatória escrita à mão pelo autor a JK, além de resposta dele em carta incluída na obra. Em outro, Juscelino relata o primeiro sorriso da filha Márcia ainda bebê. 
Já uma fita de rolo, cujo conteúdo nunca foi acessado pela família Servo por falta de equipamento, traz um bilhete com letra semelhante à que o presidente comemorou a vitória no pôquer: "Fita gravada pelo Rodrigo. Muito bôa".
A contar pela casa, os bilhetinhos parecem ter sido uma mania do ex-presidente. "Encontramos vários espalhados", diz Rosana, que chegou a cursar história para descobrir mais sobre JK.
Segundo ela, os registros que abordam a Fazendinha apontam que ele soube de lá por indicação de moradores próximos ao aeroporto rural de Luziânia.
Na época, Juscelino, que teve seus direitos políticos cassados como senador, era impedido de voltar a Brasília pelos militares e procurava um lugar onde pudesse ver as luzes da cidade.
Soube, então, da Fazenda Santo Antônio da Boa Vista, que tinha um morro mais alto.
Acabou por comprá-la e viveu ali até 1976, data em que morreu em um acidente de carro em Resende (RJ).
Oito anos depois, em 1984, a notícia de que ali havia uma fazenda chegou a Lázaro Servo. "Papai era fã do Juscelino. Ele soube da fazenda por um corretor e colocou na cabeça que iria comprar se a dona Sarah vendesse." Sarah topou.
Mas morar na fazenda nem sempre foi divertido. Assim que chegou, Lázaro deu o recado à família: havia comprado aquele espaço apenas para preservar tudo ali que estava ali dentro.
O recado frustrou os planos do Antônio adolescente de dirigir a Mercedes 1963 que pertenceu a Juscelino e estava na garagem. Na única vez que o fez quando jovem, o pai esvaziou os pneus no dia seguinte, evitando que o carro pudesse ser retirado dali de novo —o que só ocorre hoje em comemorações históricas.
A tentativa em manter tudo intacto, no entanto, nem sempre foi bem compreendida. Nos últimos anos, conflitos na família sobre o destino da Fazendinha fizeram com que ela ficasse fechada por três anos.
Para Antônio, que evita comentar sobre o caso, a situação era esperada. 
"Nem sempre é engraçado não poder sentar no sofá. Depois de um tempo, o pessoal acha chato", diz ele, que afirma nunca ter aceitado qualquer oferta de venda. "Papai comentava que fazenda todo mundo tem, mas a fazenda JK era só a dele."
Segundo Rosana, além do tombamento, a intenção atual é obter apoio de algum projeto que permita apresentar a história de JK a estudantes. 
"Queremos mostrar aos jovens que é possível ser um bom político", afirma ela, que faz um apelo ao presidente atual, Jair Bolsonaro. "Ele diz que é patriota. Precisamos que nos ajude nesse tombamento."

Conrado Hübner Mendes A corrupção do Judiciário é institucional e não se confunde com corrupção do juiz, FSP

Magistocracia rima com pornografia. Não a pornografia que desperta fantasias do governo federal, tão comprometido com a inocência das crianças que tem combatido políticas de prevenção de gravidez precoce e abuso sexual. Nem ao sexo dos juízes. Rima com as práticas obscenas do Poder Judiciário mais caro do mundo num dos países mais desiguais do planeta.
Não há ano em que a orgia magistocrática decepcione. O Prêmio JusPorn precisa ser criado para agraciar os destaques de 2019. Como vinheta, proponho: “Nenhuma nudez judicial será castigada. Toda desfaçatez magistocrática será premiada”.
Na categoria “salário-ostentação”, venceu juíza pernambucana que recebeu cheque de R$ 1 milhão e 290 mil em sua conta. A menção honrosa ficou para o juiz mineiro que levou R$ 762 mil. Um recorde a ser superado em 2020. Numa carreira em que 70% dos membros viola o teto constitucional, quebrar recordes é motivação.
Na categoria “gaveta mais cara da República”, o prêmio é repartido pela dupla Toffux. São diversos exemplos, mas gosto de lembrar da ação pendente desde 2010 que questiona lei estadual do Rio de Janeiro. A lei criou a juízes fluminenses toda sorte de penduricalhos (“fatos funcionais”, em magistocratês).
Carlos Ayres Brito votou pela inconstitucionalidade da lei em 2012. Luiz Fux pediu vista. Devolveu o caso no apagar das luzes de 2017. Em dezembro de 2018, Toffoli resolveu pautá-lo para 2019. Dois dias depois, tirou de pauta. Ao longo de 2019, nenhum novo andamento. Há quase dez anos, o Rio de Janeiro paga os benefícios. Toffoli se rendeu. O próximo presidente é Fux.
Na categoria “caravana cosmopolita”, as viagens de Toffoli a eventos institucionais em Buenos Aires e Tel Aviv ganharam destaque. Não pelas viagens em si, mas pela comitiva de assessores que o acompanharam e os gastos que incorreram.
Na categoria “ninguém segura a mão de ninguém”, ganhou a associação de juízes federais que produziu o detalhado estudo “Verbas conferidas à magistratura estadual”. O objetivo não era denunciar a injustiça absoluta dos benefícios a juízes estaduais, mas a injustiça relativa: o juiz federal não ganha como o juiz estadual. Isso fere o orgulho de um magistocrata.
Essa competição pelo melhor salário atormenta todas as subcategorias da magistocracia: juiz federal, juiz estadual, advogado da União, procurador da República, promotor de justiça, procurador do Estado, defensor público. Uma dinâmica que incentiva a espiral de volúpia patrimonialista sob o escudo da autonomia financeira.
Na categoria “poesia magistocrática”, o prêmio é repartido entre a juíza Renata Gil, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, e Augusto Aras, procurador-geral da República. Conseguiram captar a distinção magistocrática em poucas palavras. 
Ao defender que não é o momento de discutir salário de juiz, Gil confessou: “Nós queremos tratar os magistrados como um funcionário como outro qualquer?” E completou: “Se somos diferentes, não podemos entrar na formatação remuneratória do servidor comum”.
Augusto Aras indignou-se com a ideia de se reduzir férias de dois meses da magistocracia. A carga de trabalho, afinal, seria “até certo ponto desumana”. As “férias” são truque conhecido da magistocracia. Além do recesso, têm direito a dois meses de férias. Não costuma servir para descanso, mas para “vendê-las” e aumentar renda.
A corrupção do Judiciário não se confunde com a corrupção do juiz que vende sentença. Este costuma ser “punido” com aposentadoria compulsória. A corrupção do Judiciário é institucional. Está traduzida em leis, em barganhas fisiológicas e na cultura que a normaliza. Nenhum pacote anticorrupção trata dessa aberração.
Um juiz que estoura o teto ou recebe benefício indevido enriquece ilicitamente. Só de auxílio-moradia por cinco anos, foram mais de R$ 250 mil cada um. Não seremos ressarcidos.
Esta é apenas a faceta rentista e perdulária da magistocracia. Ocupam o topo 0,1% da pirâmide social brasileira. Outras colunas tratarão das facetas autoritária, autárquica, autocrática e dinástica.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.