Meus amigos estranharam quando eu disse que me opunha à
aceitação, pela Câmara dos Deputados, da admissibilidade do impedimento de
Dilma Rousseff. Sempre fui crítico dos governos do PT e considero a
presidente uma figura lamentável sob todos os pontos de vista. Além disso, ao
contrário do que dizem os governistas, não creio que as regras democráticas
estejam em risco. Os motivos jurídicos para o impedimento são controversos, mas
existem. Somam-se, é claro, a motivos políticos.
Oponho-me
ao processo em curso por causa dos desdobramentos que ele terá: um governo não
eleito encontrará pronta uma maioria parlamentar qualificada – apta, pois, a
alterar a Constituição –, articulada sabe-se lá de que forma, aberta a todo
tipo de negociações e ávida para repartir o novo poder. Será um salto no
escuro. O programa apresentado há pouco tempo pelo PMDB, intitulado “Uma Ponte
para o Futuro”, antecipa que diversos dispositivos constitucionais, como as
despesas obrigatórias em educação e saúde, a indexação dos benefícios da
seguridade social ao salário mínimo e o estatuto do Banco Central, serão
questionados. Também será questionada a Consolidação das Leis Trabalhistas
(CLT), pois, a depender do PMDB, os acordos diretos entre patrões e empregados
terão mais valor do que aquilo que as leis determinam. O mesmo texto promete
uma política econômica conservadora puro-sangue, sem as ambiguidades do PT, o
que inclui um corte drástico nas despesas de custeio para obter um
megassuperávit nas contas do setor público. Chega a ser difícil imaginar o
significado disso.
O
golpe, em curso, não será o afastamento de Dilma Rousseff. Será a formação de
um governo comprometido com um programa que muito dificilmente seria aceito
pelo povo brasileiro nas urnas. Estaremos expostos a um intenso fogo de
barragem, com o mesmo grupo de economistas apresentando sua versão,
reiteradamente, de modo a legitimar pela imprensa alterações constitucionais
importantes, patrocinadas por um governo não eleito e realizadas por um
Congresso que já perdeu legitimidade aos olhos da população.
O
impedimento mimetizará uma eleição indireta. Aqui desembocou a esperteza
política do PT e de Lula, tão enaltecida nos últimos anos. Foram eles que
se juntaram a figuras lombrosianas e lhes deram tanto poder.
Seja qual for o governo, o padrão de gastos do Estado – e,
portanto, sua relação com a sociedade – precisará ser revisto em uma dimensão
que ultrapassa muito as desastradas tentativas de ajuste que estão em curso
desde janeiro do ano passado. A atual configuração desses gastos e o nível de
consumo a que a sociedade se acostumou na última década não são compatíveis com
um crescimento econômico sustentado, com relativo equilíbrio nas contas fiscais
e externas. Empurramos o problema para frente durante alguns anos, à custa de
aumentar endividamentos. É certo que esse tempo acabou. Mas há diferentes
maneiras de lidar com a questão, não uma só.
Entre
os grandes gastos do Estado, destacam-se a seguridade social, que cuida dos
pobres, e a rolagem da dívida pública, que cuida dos ricos. Juntas, representam
nada menos que 22% do Produto Interno Bruto. Apesar de sua importância, são
dois temas em que a desinformação predomina. Vale a pena olhar para eles.
A
dívida pública se aproxima dos 3 trilhões de reais. Diante da enormidade desse
número, é fácil convencer as pessoas de que o Estado é irresponsável, gasta
muito mais do que arrecada e por isso se endivida pesadamente junto ao setor
privado, sugando recursos que poderiam se destinar ao investimento. Isso
justifica os cortes draconianos anunciados, que seriam necessários para que
possamos juntar recursos para pagar essa dívida. É a economia política da dona
de casa, totalmente intuitiva. Se ela fosse verdadeira, as faculdades de
economia poderiam fechar.
Dívidas
públicas existem no mundo inteiro porque são um recurso legítimo dos Estados
nacionais. Como os investimentos feitos hoje beneficiam as gerações futuras, é
justo que elas repartam os custos com as gerações atuais. Quando bem
realizados, esses investimentos estimulam o crescimento econômico e contribuem
para aumentar a capacidade de arrecadação de tributos, equilibrando as contas
num momento seguinte.
O
segredo que os economistas sabem, mas precisa ser compartilhado com todos, é o
seguinte: nenhuma dívida pública do mundo jamais será paga. Por isso, não há um
limite fixo para elas (o Japão deve 230% do seu PIB, os Estados Unidos, 104%).
Seu tamanho só é relevante na medida em que influencia os custos e as condições
de sua rolagem em cada momento. A dívida brasileira não é especialmente alta,
como percentagem do PIB (em torno de 67%), mas é muito cara. Além disso,
as trapalhadas de Dilma Rousseff aceleraram seu crescimento, o que, de fato,
inspira cuidados, pelos custos crescentes que isso acarreta.
Mas é
essencial não perder de vista que dívida pública não é igual a dívida privada.
Nem os governos vão pagá-la, nem os credores, de posse de títulos que lhes
garantem ótimos rendimentos, querem recebê-la, pois ambos precisam dela.
Os
títulos públicos brasileiros são hiperindexados e recebem generosos juros
reais. Negociados diariamente, são um ente híbrido, uma dessas jabuticabas que
só existem aqui: rendem como se fossem uma poupança premiada, mas têm a mesma
liquidez da moeda. Nossa economia funciona, pois, com dois tipos de moeda: a
comum, à qual todos têm acesso e que se desvaloriza no ritmo da inflação, e a
financeira, que, além de protegida, dá lucro certo, sem passar pelas operações
da economia real. Nessas condições, será mesmo que o setor privado financia o
governo, ou ocorre justamente o contrário? Quem, afinal, financia quem?
O
problema, como se vê, não está só no nível da taxa de juros, mas no próprio
regime de política monetária que predomina no Brasil. A rolagem da dívida,
nessas condições, custa 8% do PIB, sem gerar gritarias. O que tira o sono dos
conservadores é o salário mínimo pago aos aposentados. É aí que querem
desindexar, em nome do equilíbrio financeiro do setor público, ameaçado pelo
alegado déficit da Previdência Social. Também aqui a confusão predomina, pois
há números para todos os gostos.
Ogrande acordo civilizatório inscrito na Constituição de
1988 foi a formação de um sistema de seguridade com três componentes: saúde
pública (amparo universal aos doentes), assistência social (amparo a portadores
de deficiência e a pessoas em situações de risco social) e previdência (amparo
aos que ultrapassaram o período de vida laborativa). Esse sistema, que o
programa apresentado pelo PMDB quer desmontar, é o coração do pacto social
brasileiro contemporâneo. Por sua extensão, capilaridade e profundidade,
provavelmente é o principal motivo da nossa relativa estabilidade social.
Justamente por isso é caro: custa 14% do PIB.
Os
dois primeiros componentes da seguridade correspondem a direitos líquidos de
cidadania. Como tal, não contam com receitas próprias, sendo financiados pelos
tributos que os constituintes criaram para esse fim (as contribuições sociais).
Não se aplica nesses casos o conceito de déficit (ninguém diz, por exemplo, que
uma escola pública, que oferece ensino gratuito, é “deficitária”; tampouco se
pode dizer isso de um hospital público ou da assistência a uma pessoa pobre e
portadora de uma deficiência grave). Só o terceiro componente da seguridade, a
previdência propriamente dita, gera receitas próprias.
Mesmo
assim, a situação financeira da seguridade oscila ano a ano, entre déficits e
superávits, conforme a conjuntura econômica do país. Opera contra seu
equilíbrio o mecanismo denominado Desvinculação de Receitas da União (DRU), que
permite ao governo não aplicar na seguridade uma parte dos tributos que são
recolhidos em nome dela. (Em 2015, o governo federal deu algo como 160 bilhões
de reais em desonerações fiscais para diversos setores do empresariado, o que
mostra uma esquizofrenia: abre-se mão de receitas com facilidade, e ao mesmo
tempo denuncia-se a existência de um déficit.)
A
Previdência, especificamente, tem em torno de 33 milhões de beneficiários, com
rendimentos médios de 1.207 reais. É muito difícil prever sua evolução, pois as
variáveis decisivas para seu equilíbrio financeiro de longo prazo não estão
situadas dentro dela, mas na economia como um todo: a evolução do emprego
formal, o patamar de salários, a produtividade dos trabalhadores ativos etc. É
justo rever abusos e privilégios, onde eles existem, e prudente adotar medidas
para adaptar o sistema ao novo perfil demográfico brasileiro – aumentando a
idade para as aposentadorias, por exemplo –, mas nada disso pode servir de
pretexto para um desmonte selvagem.
Há um
bom debate a ser feito, envolvendo um espectro de posições sérias muito mais
amplo do que normalmente se vê. Mas, pelo andar da carruagem, não haverá debate
nenhum. Um governo não eleito e um Congresso desmoralizado, contando com grande
banda de música, formarão um rolo compressor sobre a cidadania, impondo
mudanças regressivas no meio de uma crise social já enorme. Não sabemos para onde
isso vai nos levar.
Estamos diante de uma escolha de Sofia: se Dilma Rousseff,
por milagre, sobreviver ao impedimento, continuaremos sujeitos a um não
governo. Se Michel Temer assumir, teremos um governo hostil à construção da
nação. O problema, pois, não é que as regras formais da democracia estejam em
perigo. De certa forma, é justamente o oposto: estamos às vésperas de um grave
retrocesso social e civilizatório tornado possível pelo desastre do PT e
pelo manejo dessas regras pela oposição.
A
dimensão de longo prazo da crise atual é ainda mais grave: o sonho do Brasil
Nação, que floresceu no século XX, pode estar terminando ou, pelo menos, sendo
colocado em suspenso por longo tempo. Presos em nosso labirinto de
mediocridade, incapazes de realizar um esforço endógeno minimamente coerente,
desprovidos de forças nacionais renovadoras, caminhamos para estacionar em
nosso lugar natural no sistema-mundo, a mais extrema periferia. O PT não
consegue ver isso, pois, apesar de ter alguma sensibilidade social, nunca
pensou a nação.
A
solução menos ruim é que o Tribunal Superior Eleitoral casse a chapa
Dilma–Temer, pelas ilegalidades cometidas durante o processo eleitoral. A
convocação de novas eleições propiciaria dois ganhos para o país: a realização
de um debate de grande intensidade, que ajudaria a explicitar as questões de
fundo, e a formação de um novo governo legítimo, seja ele qual for. Precisamos
deter a marcha da insensatez.